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Cartéis, cantinas públicas e mercados locais

Há que ter a coragem de afrontar o cartel de interesses à volta do sistema alimentar português e garantir a efetivação do direito humano à alimentação saudável.

Nas últimas semanas vieram a público notícias sobre a má qualidade da comida servida na generalidade das cantinas públicas. São cantinas escolares, hospitalares, das cadeias e de muitos outros serviços públicos.

Cerca de 70% das cantinas escolares têm estado entregues a apenas duas empresas privadas. Em 2007, a Autoridade da Concorrência abriu uma investigação para apurar a cada vez mais evidente cartelização do fornecimento de refeições a cantinas públicas. A investigação deu como provadas as acusações de cartel.

Estava já prevista na lei a possibilidade de inibir temporariamente aquelas empresas de fornecer entidades públicas. Contudo, a mesma não foi decretada. O processo acabou no Tribunal da Relação de Lisboa, mas foi declarado prescrito em 2015, a contento das empresas fornecedoras.

Entretanto, as duas empresas de restauração coletiva do grupo Trivalor, que sempre tiveram posição dominante neste cartel (a Itau e a Gertal), perderam os concursos de fornecimento de refeições para o próximo triénio. Ex-trabalhadores destas duas empresas, despedidos na sequência da perda do concurso, denunciaram a má qualidade e a origem das matérias primas. A ferida tornou-se cada vez mais exposta.

De facto, além da má qualidade das matérias primas, uma das denúncias que mais chama a atenção é a de que quase toda a comida vem de outros países, congelada, alguma da China. Para o chefe de cozinha Nuno Queiroz Ribeiro “qualquer governo que pratique este tipo de alimentação devia ser condenado por abuso de crianças.”

Tudo indica tratar-se de uma atuação de natureza criminosa que permite a cartelização do fornecimento da alimentação a cantinas públicas, que atenta contra a saúde dos utentes, prejudica gravemente a produção agrícola local e coloca em causa o esforço ambiental para diminuir a pegada de carbono deixada pela importação de matérias primas.

Alterar esta situação é uma urgência. Em 2015, o Bloco de Esquerda apresentou um projeto de resolução na Assembleia da República que recomendava já este caminho, mas que veio a ser rejeitado. Como agora se comprova, os interesses envolvidos eram imensos.

Em Novembro de 2015, os deputados Carlos Matias e Pedro Soares apresentaram um projeto de lei para a “Promoção do Acesso a Produtos da Agricultura de Produção Local às Cantinas Públicas” que impunha a obrigatoriedade de “uma percentagem igual ou superior a 60% do valor dos produtos alimentares adquiridos serem de produção na região onde se insere a respetiva cantina”.

Esta iniciativa legislativa esbarrou em normas do Código da Contratação Pública (CCP) e ficou a aguardar melhores dias nas gavetas da Comissão Parlamentar de Agricultura. Entretanto já houve alterações no CCP, por via da transposição de regulamentos comunitários sem que estas barreiras tenham sido alteradas, apesar das diretivas europeias o permitirem. Estão criadas condições, ao nível da opinião pública, para que o projeto de lei do Bloco avance e que seja apresenta, ao mesmo tempo, iniciativa legislativa para introduzir as necessárias alterações no CCP na mesma linha do modelo de transposição da Diretiva 2014/24/UE adotado na Itália e na França, países que têm uma estratégia clara de incentivar a introdução de produtos agrícolas de qualidade na restauração coletiva pública, particularmente os fornecidos diretamente pelos produtores agrícolas e agroalimentares.

O debate que sobre esta matéria está a ocorrer tem de contribuir para a alteração do sistema de fornecimento de refeições, em particular às crianças e jovens em idade escolar, tendo no centro uma alimentação equilibrada, assente em produtos preferencialmente frescos, produzidos na proximidade e, ao mesmo tempo, contribuindo para o desenvolvimento da agricultura local.

O representante da FAO em Portugal tem feito diversas intervenções na defesa de uma Lei de Bases para o Direito Humano à Alimentação Saudável. Há que ter a coragem de afrontar o cartel de interesses à volta do sistema alimentar português e garantir a efetivação do direito humano à alimentação saudável, tal como exigimos o direito à saúde, à educação ou à habitação. O Estado tem de dar o exemplo, começando pelas cantinas públicas.

Sobre o/a autor(a)

Engenheira agrícola, presidente da Cooperativa Três Serras de Lafões. Autarca na freguesia de Campolide (Lisboa). Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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