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Descentralizar não é mudar a escala do despotismo

Ao Porto não interessa ter uma placa a dizer “Infarmed” num edifício municipal vazio. Interessa ter serviços qualificados e organismos com massa crítica e isso não se faz dispensando quem dedicou décadas a construir o mais importante naquele instituto: o seu conhecimento técnico.

Sou do Porto e reajo epidermicamente às mais variadas e muito frequentes manifestações de centralismo que existem em todas as escalas, em todas as relações sociais e em todas as organizações (incluindo os partidos, sem exceção).

No nosso país, a concentração de serviços do Estado em Lisboa priva o resto do território de aceder nas mesmas condições a bens públicos e a direitos sociais, centraliza os empregos qualificados, acentua a desigualdade de rendimento. Democratizar a democracia e repartir os serviços públicos e os centros de decisão pelo território é essencial. Também por isso, o modo como se geriu a decisão de transferir o Infarmed para o Porto dificilmente poderia ter sido pior. Não pelo facto, alegado de forma paroquial por responsáveis do Instituto, de que mudá-lo de cidade acarrete “perda de influência no contexto europeu”, “perda de competitividade” e de “reconhecimento internacional”. O Porto não são as ilhas selvagens e já é tempo de não olharmos para Portugal como sendo Lisboa e “a paisagem”. Mas com este episódio quer o Governo quer a Câmara prestaram um péssimo serviço ao Porto e ao país.

O Governo, que pretendia com este gesto dar provas de ser um campeão da descentralização, exibiu com ele, afinal, essa outra forma de centralismo que é tomar decisões a partir de cima, à revelia de quem é diretamente afetado por elas. Uma das formas mais graves do absolutismo do poder é, com efeito, a que acontece no campo laboral. Anunciar uma decisão destas sem nunca ter consultado os trabalhadores nem negociado com os envolvidos é inqualificável.

Mais: se a medida já estava prevista na candidatura à Agência Europeia do Medicamento, como revelou António Costa, por que razão se manteve confidencial até agora e por que razão o anúncio é feito desta forma súbita e avulsa? Não é isto revelador do modo atabalhoado como a própria candidatura do Porto à EMA foi preparada, tarde e a más horas, depois de uma decisão centralista e errada de candidatar Lisboa?

Rui Moreira não esteve melhor. O seu primeiro impulso foi correr atrás do anúncio para aparecer na fotografia. As declarações seguintes foram um desastre.

À preocupação dos 350 trabalhadores que foram surpreendidos com uma súbita mudança radical nas suas vidas, Moreira reagiu com um post no Facebook a dizer “estou a adorar o ressabiamento de alguns”, que apagou passado umas horas. Ao facto de a lei prever mecanismos de proteção dos direitos dos trabalhadores contra este tipo de improvisos e de abusos de poder, mostrou ignorância e despreocupação. E abordou o problema de fundo de um modo tão pequenino que envergonha a cidade. Ao Porto não interessa ter uma placa a dizer “Infarmed” num edifício municipal vazio. Interessa ter serviços qualificados e organismos com massa crítica e isso não se faz dispensando quem dedicou décadas a construir o mais importante naquele instituto: o seu conhecimento técnico. O problema de Rui Moreira é uma questão de fundo. Para ele, a descentralização não é uma forma de repartição do poder (pelas pessoas, pelos territórios, pelos diferentes grupos sociais), mas apenas um despotismo que muda de escala.

Artigo publicado no expresso.sapo.pt a 24 de novembro de 2017

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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