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Dia Mundial dos Pobres … e dos ricos

Já se tornou banal vermos estabelecido um “Dia” para cada coisa e, às vezes, até um dia para várias. Talvez também por isso, depois, nos esqueçamos todos os dias de todas essas coisas.

“Dia Mundial dos Pobres”. Mais um “Dia”, este instituído pelo Papa Francisco como devendo ser o último domingo do ano litúrgico, coincidente, este ano, com o passado domingo, 19 de Novembro.

Já se tornou banal vermos estabelecido um “Dia” para cada coisa e, às vezes, até um dia para várias. Talvez também por isso, depois, nos esqueçamos todos os dias de todas essas coisas.

Se bem que algumas dessas Coisas, que na vida nos entram todos os dias “pelos olhos dentro”, pela sua relevância humana, social, cultural e outras, mereçam ser escritas com maiúscula. É o caso, sem dúvida, dos Pobres.

Daí que não se ponha em causa a bondade da instituição de (mais) este “Dia”. Não apenas por esse enorme respeito devido a quem tal Dia é dirigido mas, também, por de quem parte esta iniciativa, alguém que, como o Papa Francisco, tem reorientado (inclusive, pelo que se percebe, com alguma oposição interna e externa …) a Igreja no sentido da sua intervenção social (e, mesmo, política, necessariamente), visando, talvez, que esta “reocupe os espaços de onde nunca deveria ter saído”, como muitas vezes disse e escreveu o “bispo vermelho”, D. Manuel Martins, recentemente falecido.

Contudo, sendo por isso certo que não nos move nenhuma hostilidade para com o Papa Francisco (bem pelo contrário), não se pode deixar de “lhe” fazer algumas perguntas sobre (mais) este “Dia”.

O que, em fundo, nos intriga é “só” para que é que serve o Dia Mundial dos Pobres, quando:

- Se mantém a mesma (se não pior) situação que o Sr. Papa Francisco denunciou há cinco anos. Ou seja, quando, “hoje, tudo entra no jogo da competitividade e da lei do mais forte, onde o poderoso engole o mais fraco”. Quando “o ser humano é considerado, em si mesmo, como um bem de consumo que se pode usar e depois lançar fora”. Quando mantemos um “sistema que tende a devorar tudo para aumentar os benefícios”, em que “qualquer realidade que seja frágil fica indefesa perante os interesses do mercado divinizado, transformados em regra absoluta”. Quando “esta economia mata” (Exortação Evangelii Gaudium, Novembro de 2013)?

- Se mantém praticamente mesma (se não pior) situação que um seu antecessor denunciou há mais de meio século. Ou seja, quando “o servilismo dos poderes públicos aos interesses de grupo acabou no imperialismo internacional do dinheiro” (João XXIII, Encíclica Mater et Magistra, Maio de 1961)?

- Se mantém não muito diferente a situação contra a qual se indignou, há quase um século, um ainda mais velhinho seu antecessor seu. Isto é, quando “à liberdade de mercado, sucedeu a hegemonia económica, à avareza do lucro se seguiu a desenfreada ambição do predomínio, e assim toda a economia se tornou horrivelmente dura, inexorável, cruel” (Pio XI, Encíclica Quadragesimo Anno, Maio de 1931)?

- Enfim, Sr. Papa Francisco, para que é que serve o tal "Dia Mundial dos Pobres" quando pouca modificação temos da situação contra a qual se revoltou um mais longínquo antecessor seu, já lá vão – veja bem! – 126 anos. Quer dizer, quando, “pouco a pouco, muitos trabalhadores, isolados e sem defesa, têm-se visto com o decorrer do tempo entregues à mercê de senhores desumanos e à cobiça de uma concorrência desenfreada”. Quando “a usura voraz (…) não tem deixado de ser praticada por homens ávidos de ganância e de insaciável ambição”. Quando “a tudo isto se deve acrescentar o monopólio do trabalho e dos papéis de crédito, que se tornaram o quinhão dum pequeno número de ricos e opulentos, que impõem assim um jugo quase servil à imensa multidão de trabalhadores” (Leão XIII, Encíclica Rerum Novarum: sobre a condição dos operários, Maio de 1891)?

Dirá o Sr Papa Francisco que já lá vão muitos anos, que a situação mudou muito. Mudou?

Como mudou, se em Portugal grandes empresas (e “superfícies”) distribuem centenas de milhões de euros pelos accionistas, ao mesmo tempo que, em coerência com a perspectiva de que “sem salários baixos não há emprego”, a maior parte dos trabalhadores ao seu serviço, realizando um trabalho sobreintensificado e penoso, ganham o salário mínimo nacional ou pouco mais?

Como mudou, se em Portugal mais de 730.000 trabalhadores têm um rendimento líquido de 496 euros mensais quando há quem pelo seu trabalho tenha um rendimento diário de 5.500 euros por dia, mais de dois milhões de euros por ano?

Como mudou, se se discute em Portugal um salário mínimo de 580 euros ilíquidos e os 25 portugueses mais ricos acumulam 10% da riqueza do país e viram as suas fortuna crescerem este ano para 18,8 mil milhões de euros?

Como mudou, se também por isto, em Portugal, há mais de dois milhões e seiscentos mil pessoas (muitas delas sendo trabalhadores) em risco de pobreza, ou seja, com um rendimento mensal que não ultrapassa os 493 euros?

Como mudou, se 1% da população mundial detém tanta riqueza como a dos 99% junta?

Como mudou se 8 (oito, só oito) pessoas detêm tanta riqueza quanta a metade mais pobre da população mundial?

Como mudou, se uma em cada dez pessoas no mundo vive com menos de 1,60€ por dia, 580 euros por ano, e Bill Gates precisa de 212 euros por segundo, 17 milhões de euros por dia, mais de 6.610 mil milhões de euros por ano?

Como mudou, se grande parte destas ou de outras imensas fortunas, em vez de fomentarem o desenvolvimento e o emprego (que poderiam ajudar a diminuir a pobreza), se limita a ser utilizada na especulação financeira humana, social e economicamente estéril, se limita a ser “filha” do “dinheiro a fazer amor com o dinheiro”, como escreveu o saudoso escritor uruguaio Eduardo Galeano (3/9/1940 – 13/4/2015)?

Como mudou, se hoje, em que se mantêm estas desigualdades sociais gritantes, muitos detentores dessas grandes fortunas (parece que até a rainha de Inglaterra), fugindo aos impostos e lavando o dinheiro sujo pela via dos off shores (Panamá papers, paradise papers, etc.), fazem pobres (ou mais pobres) os Outros?

Sim, eu sei que o Sr. Papa Francisco não me vai perguntar por e para que é que, a propósito do Dia Mundial dos Pobres, são para aqui chamados os ricos. Até porque, na homilia em que anunciou a instituição deste “Dia”, disse que “infelizmente, nos nossos dias, enquanto sobressai cada vez mais a riqueza descarada que se acumula nas mãos de poucos privilegiados, frequentemente acompanhada pela ilegalidade e a exploração ofensiva da dignidade humana, causa escândalo a extensão da pobreza a grandes sectores da sociedade no mundo inteiro”.

De facto, como se pode depreender até deste excerto da sua homilia em que anuncia a instituição do Dia Mundial do Pobres, não é demasiado “radical” dizer-se, escrever-se que só há pobres porque há ricos.

Aliás, ao afirmar-se isto desta forma mais se não faz do que apoiarmo-nos no pensamento de alguém que, com uma vida cívica, académica e politica exemplar, sempre analisou este domínio com lucidez e sustentação científica, bem como com enorme sensatez e sensibilidade humana e social.

Referimo-nos ao professor Alfredo Bruto da Costa (5/8/1938 – 11/11/2016), ex-ministro do Assuntos Sociais, ex-membro do Conselho de Estado e ex-presidente da Comissão Nacional de Justiça e Paz, o qual, sempre tendo entendido e afirmado que “se não se actuar na redução das desigualdades sociais, a pobreza continuará”, numa das suas intervenções (entrevista ao DN da Madeira, 30/10/20101), bem sintetizou o que precede: “os pobres são pobres porque os ricos são ricos”.

De qualquer modo, Sr. Papa Francisco, é positiva a instituição de (mais) este “Dia”, o Dia Mundial dos Pobres. Quanto mais não seja para lembrar o que precede.

Mas com certeza que admite, ainda que possa parecer ironia, que não se pode falar de pobres sem falar de ricos.

E, por isso, suponho que admite mesmo que, neste contexto e sentido, o Dia Mundial dos Pobres é também, de certo modo, perversamente, o “dia mundial dos ricos”.


Sobre o/a autor(a)

Inspector do trabalho aposentado. Escreve com a grafia anterior ao “Acordo Ortográfico”
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