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Atacar a Rússia

Agora é tudo muito menos sensual: a espionagem serve-se fria, entre zeros e uns, "made in Rússia".

A espionagem ao alcance de todos. A espionagem saiu das salas de aula e vulgarizou-se por todos os dias digitais, viralmente transmissível, distribuição em rede mas de singular modo operativo. Já não se serve na bandeja da Guerra Fria ou em policiais de literatura de género. Quando os agentes secretos eram heróis de cinema ou figuras de estilo, o debate tinha personagens e personificações, como se o MI-6 passasse das mãos de Sean Connery para Roger Moore sem sabor de injustiça ou de Violette Szabo para Mata Hari sem perda de valores. Agora é tudo muito menos sensual: a espionagem serve-se fria, entre zeros e uns, "made in Rússia".

Donald Trump tem perguntado vezes sem conta a Putin, como aqueles miúdos de escola que questionam repetidamente o preceptor sobre as reais motivações do internato. Por mais que Putin se esforce em negar, contas da alta cúpula democrata foram vítimas de "hackers", informações foram publicadas por intermediários como a WikiLeaks, Guccifer 2.0 e DCLeaks.com, criaram-se e alimentaram-se "trolls" para perseguir Hillary Clinton. Mas se Trump convenientemente duvida, Theresa May abraça certezas: "nós sabemos o que vocês andam a fazer", disparou a primeira-ministra britânica relativamente à ingerência virtual russa no referendo sobre o Brexit, acusando Putin de estar na origem de ciberataques destinados a minar sociedades livres e a semear a discórdia no Ocidente (após 156 mil contas do Twitter - centenas delas ligadas ao Kremlin - terem desatado a disparar opiniões massivamente favoráveis à saída da União Europeia). Aqui ao lado, o primeiro-ministro espanhol junta-se ao coro dos referendos minados, assegurando que milhares de "bots" russos (e venezuelanos) espalharam desinformação e notícias falsas no mês do referendo independentista na Catalunha. A avalancha russa podia ser encarada como um prémio para a incapacidade dos líderes europeus em perceber o ocaso da Europa. Em boa verdade, as gigantescas bolas de neve europeias têm o nome de James Cameron e Mariano Rajoy.

Aconteceu enquanto Trump duvida. O Ministério da Defesa russo apresentou "provas irrefutáveis" da ajuda norte-americana ao Daesh na Síria através de uma imagem retirada de um videojogo e com "frames" retiradas de vídeos divulgados pelo Exército iraquiano no contexto do bombardeamento a forças do Daesh em... Fallujah. Não há razão para acreditar nas boas intenções russas. Mas como referia Alexey Pushkov, a propósito das certezas de Theresa May, "a ordem mundial (...) que resulta da invasão do Iraque, da guerra na Líbia, do aparecimento do ISIS e o terrorismo na Europa, sobrevive por si. Não precisam de atacar a Rússia para a manter". Da Rússia com amor.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 22 de novembro de 2017

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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