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Afinal cheira a crise

Este texto é sobre a crise que Schäuble anunciou na despedida na sua última reunião do Eurogrupo, antes mesmo de receber uma nota de cem euros com a sua cara gravada.

Desculparão os leitores, mas este texto não é sobre a crise de que se fala, sobre o barómetro que mede quem ficou mais “chocado”. Com franqueza, não havia necessidade. É sobre outra crise, uma que importa mesmo. Aquela que Schäuble anunciou na despedida na sua última reunião do Eurogrupo, antes mesmo de receber uma nota de cem euros com a sua cara gravada, que amável presentinho. Essa crise não é o tal diabo que faltou e que o homem bem se fartou de anunciar (aos países do sul), mas é certamente o risco de um abismo basto infernal (para todos os países).

Lembrava Schäuble, sem deixar de picar Mario Draghi, que a inundação de dinheiro despejado na Europa nos últimos dois anos tem como destino mais certo uma bolha financeira. E que, como é da natureza das coisas, a bolha rebentará. Draghi respondeu esta semana que não vê nenhum problema sistémico, nem na valorização do euro, nem no excesso de dívida. Como se vai embora dentro de ano e meio, bem se percebe que não queira em caso algum perturbações que obriguem a novas formas de intervenção – até porque lhe restam poucos instrumentos para o fazer.

O BCE injectou 2.100.000 milhões de euros nos mercados financeiros em dois anos. Promete continuar, mesmo que em dose mais moderada. Ora, tudo correria bem se esse capital fosse usado em investimento. Não foi. Serviu essencialmente para aumentar o preço dos activos financeiros e portanto para enriquecer quem já tinha um tesouro.

Segundo os cálculos do FMI, nas economias mais desenvolvidas e nas últimas três décadas, o rendimento per capita dos 1% mais afortunados cresceu três vezes mais depressa do que o do resto da população. Resultado: nestes países mais ricos, os 99% de baixo ganharam mais 48% nesse período, mas os 1% triplicaram o seu rendimento (como assinalado no gráfico). Nos últimos dois anos mais se agravou esta desigualdade, que é o primeiro efeito da bonança.

O segundo efeito é a dívida. Rolamos sobre dívida. Como se escreve num relatório do FMI, “a dívida lubrifica as rodas da economia. Permite aos indivíduos fazer grandes investimentos hoje, como comprar uma casa ou ir para a universidade, comprometendo parte dos seus rendimentos futuros. Isso está certo em teoria. Mas como a crise financeira global demonstrou, o rápido crescimento da dívida das famílias, e em especial as hipotecas, pode ser perigoso.” Ponha perigoso nisso. Neste mundo bipolar, a dívida dirige a economia e portanto inflaciona o risco de uma crise financeira (o delicioso termo profissional é uma “correcção técnica do mercado”), já para não incluir no menu dos perigos algum tweet de Trump ou um bombardeamento algures.

O terceiro efeito deste maná de dinheiro fácil é que reforça a vulnerabilidade de quem sofreu a crise e privilegia os seus beneficiários, porque assim são as suas regras. Revelou Draghi recentemente que, em 2012-2016, o BCE lucrou 7.800 milhões de euros em juros e ganhos de capital com a dívida grega. Esse lucro é depois repartido entre os bancos centrais de acordo com a proporção de cada um no capital do BCE (ou seja, a Alemanha ganha mais e, se a Grécia esperava o repatriamento de algum desse dinheiro, enganou-se, porque até isso lhe foi cortado).

O BCE também lucrou 5.200 milhões com a dívida portuguesa, mas nesse caso uma parte foi entregue ao Banco de Portugal (é a origem dos célebres dividendos a pagar pelo banco ao Tesouro) – e outra aos outros bancos.

A Alemanha é entretanto beneficiada com a compra de 400 mil milhões da sua dívida a juros negativos ou quase zero e o BCE fica a perder com essa operação – mas a Alemanha monetariza parte da sua emissão de dívida e a Europa sofre esta economia predatória. Não foi revelado se a nota de 100 euros entregue a Schäuble conta para tal montante.

NB- O texto mais curioso sobre Neto de Moura, o juiz que cita a pena de morte da mulher adúltera, é de JM Tavares. Claro que ele se rebola de indignação contra o juiz, que é “cavernícola”, mas o que o irrita mesmo é que alguém lembre que a conversa da discriminação das mulheres é uma cultura: antiga, como expressa nas tribos do Antigo Testamento, e moderna, como expressa nas leis que até ao século XX davam a mulher como coisa do homem. Vai daí, inventa uma novela gira sobre a predestinação do juiz, que se tivesse brincado com vestidos cor de rosa em bonecas não cederia à pulsão da tal pena de morte. O que vale é que Tavares pede logo desculpa a quem o lê, acrescentando, com a condescendência de um barão à lareira: “aquilo que pessoas como eu ou o Ricardo (é o Araújo Pereira) afirmam” é que não queremos cá “picuinhices estapafúrdias” (a sua própria novela sobre os vestidos das bonecas). Ainda bem que Tavares segue “o Ricardo” e pensa como ele. É um alívio. Se não fosse a protecção “do Ricardo” só sobrava a coitada da pilhéria.

Artigo publicado no jornal “Público” em 27 de outubro de 2017

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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