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Um Juiz que já era reacionário no século XIX

É impensável que em 2017 um juiz se ache no direito de desrespeitar todos os avanços no quadro legal do combate à violência doméstica.

Imaginemos que uma mulher é sequestrada pelo ex-marido e por outro homem com quem teve uma relação amorosa e é brutalmente agredida por ambos com uma “moca” de pregos. Suponhamos que o Tribunal decide atribuir aos dois agressores uma leve pena suspensa e que, após recurso, a sentença é confirmada porque “o adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou (são as mulher honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras), e por isso vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher”. Imaginemos que o juiz acrescenta que “o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem”. Em que século estamos?

De acordo com o acórdão do Tribunal da Relação do Porto da responsabilidade do juiz desembargador Neto de Moura estamos em finais do século XIX, dado que não “ainda há muito tempo a lei penal [de 1886] punia com uma pena pouco mais que simbólica o homem que, achando a sua mulher em adultério, nesse ato a matasse”, acrescentando que “sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte. Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte”.

Dei-me ao trabalho de confirmar que existe no referido Código Penal de 1886 uma Secção III sobre “Adultério” que atenua a pena do marido e condena a mulher a pena de prisão por relação extraconjugal. Está logo antes do artigo que atenua o infanticídio cometido pela mãe para ocultar a sua desonra ou pelos avós maternos para ocultar a desonra da mãe. Até lá chegar temos de passar pelo capítulo I, que condena a pena de prisão quem faltar ao respeito à religião do reino ou quem celebre culto que não seja o da religião católica.

O choque provocado pela publicação deste acórdão é evidente. É impensável que em 2017 um juiz se ache no direito de desrespeitar todos os avanços no quadro legal do combate à violência doméstica para aplicar, dentro da sua margem de discricionariedade, um referencial moral do século XIX. Não tivessem vindo os Bispos afirmar que os Tribunais não podem recorrer à Bíblia e seria difícil acreditar que ainda estamos no século XXI.

Este acórdão tem de ser um alerta. A violência doméstica e de género é um crime que condena mulheres a vidas de violência, quando não acaba matá-las. Nos últimos anos temos melhorado o quadro legal, a proteção das vítimas. O Bloco de Esquerda batalhou muito para que a violência doméstica seja um crime público mas apenas 16% dos processos chegam a Tribunal e, desses, mais de 90% das condenações resultam em pena suspensa. Isso mostra que não basta mudar as leis.

Não é raro encontrar por detrás de tantas penas suspensas fatores atenuantes como aquele que foi utilizado pelo acórdão do Tribunal do Porto. Embriaguez, relações extra-conjugais e até o jantar queimado. Não é possível que a sociedade reconheça a igualdade de género e continue a permitir que as vítimas de violência doméstica sejam duplamente agredidas, pelo culpado e pelo juiz que a condena moralmente.

Tenho a certeza de que este juiz não representa a realidade dos magistrados em Portugal mas isso não é caso para ser condescendente. Pelo contrário, torna mais clara a necessidade de exigir o seu afastamento em nome do combate à violência doméstica. Uma opinião imbecil não faz história, um acórdão baseado nela transforma-se em jurisprudência.

Artigo publicado no jornal “I” em 25 de outubro de 2017

Sobre o/a autor(a)

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
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