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Venerando desembargador
Na coreografia formal levada à cena nos tribunais, era costume utilizar a palavra “venerando” quando alguém se dirigia a um juiz desembargador. Esta formalidade arcaica e ritual emitia sinais por toda a parte. Poder e distância. Alguém lá em cima, um desembargador, era merecedor de veneração, de respeito, de adoração. Um semideus. Venerando desembargador.
Pode ser que a fórmula tenha já caído em desuso. Não garanto que ainda não seja utilizada.
Mas o que caiu definitivamente, sem qualquer dúvida, foi o respeito que aquela palavra sugeria. Acórdãos como o que hoje se discute, caracterizados por uma sórdida obscenidade, que integram ataques à coluna vertebral do Estado de Direito e às convenções internacionais a que Portugal se vinculou, concorrem de forma definitiva para o desrespeito e desconfiança que o cidadão comum hoje nutre pelos tribunais. O Estado de Direito adoeceu gravemente.
Carta aberta ao juiz que escreveu o acórdão:
Senhor juiz desembargador, num país em que a violência doméstica atinge o grau trágico que conhecemos, o acórdão de que V. Exa é autor é um estímulo para que a mesma não só continue, mas se propague em bom ritmo e com total normalidade.
V. Exa contribuiu com as linhas escritas pelo seu punho para que as mulheres deste país continuem a ser maltratadas, torturadas, assassinadas. Só faltou aplaudir.
Uma moca com pregos? Repito, uma moca com pregos? Estavas mesmo a pedi-las, deve V.Exa ter pensado, ao redigir aquele texto indecente que integra uma sentença de um tribunal superior.
O Senhor Desembargador cita a Bíblia. Lembro-lhe, porém, que há um outro livrinho, mais pequeno, de mais fácil acesso, vendido a preço módico em qualquer livraria, que se chama Constituição. Constituição da República Portuguesa. Nunca ouviu falar? Eu julguei que essa seria a Bíblia que V. Exa invocaria, a Bíblia dos tribunais e dos cidadãos. Mas não. Enganei-me. A Bíblia citada é a outra com o seu velho e novo testamento, um texto sagrado para os cristãos, nas suas palavras e leituras polissémicas.
No acórdão proferido é citado também o Código Penal de 1886. Saudades, não é verdade? Saudades daqueles artigos ignominiosos em que o homem que matasse a mulher em flagrante tinha uma pena simbólica. V. Exa, aplicou de facto o código de 1886. E subscreveu a teoria da desculpabilidade da selvajaria.
Mais, V. Exa foi mais longe, e lembrou-nos dessa outra selvajaria que é a lapidação. Pedras brancas, redondinhas, afincadamente atiradas sobre mulheres até à morte. À distância, para que os atiradores não sejam salpicados de sangue.
V.Exa até poderia ter mantido a pena suspensa. Paleio jurídico que fundamentasse essa decisão não lhe faltaria. Mas não. V. Exa não se ficou por aí. Ao escrever o que escreveu, V. Exa foi cúmplice, um cúplice cruel, de uma agressão cruel.
O acórdão aceitou e justificou aquele comportamento selvático, compreendendo-o, tratando-o com palavras tépidas donde sobressai até algum afecto, uma solidariedade velada, para com a grande vítima do processo, que na perspectiva de um tribunal superior do Portugal de 2017, seria o agressor.
Há muito tempo que não ouvia a expressão “mulher adúltera”. Pensei que tinha ficado encafuada em páginas de livros antigos, que faria parte daquele património constituído por uma memória de desigualdades ultrapassadas, tão injustas que ainda dói o olhar quando sobre elas se debruça. Mulher adúlter. Acho que nem o Cerejeira com aquela voz de sonsice hipócrita e farisaica falava assim.
Mulher adúltera. Acho que nem o Cerejeira com aquela voz de sonsice hipócrita e farisaica falava assim.
Este acórdão envergonha-me. Faz-me medo. Pensar que a justiça portuguesa alberga criaturas do calibre de V.Exa, a quem o Estado paga um salário para administrar justiça em nome do povo, faz-me pensar que retrocedemos um século. Pelo menos a 1886.
Já não é a primeira vez, ao que parece, que V. Exa produz sentenças lesivas da dignidade das mulheres. Num acórdão anterior, classificou como uma mera agressão, e não como violência doméstica, o ataque a uma mulher à bofetada, com o filho de nove dias nos braços; considerou irrelevante que o agressor enquanto desferia bofetadas sobre a mulher a insultasse de “puta” reiteradamente, como se a acústica do insulto se tratasse de uma mera sonoridade inconsequente.
Pode manter-se no lugar um juiz que desrespeita a constituição, o código penal, as mil e uma convenções internacionais assinadas pelo nosso país? Pode manter-se no lugar um juiz que incumpre a lei, atentando de uma forma tão primária contra o Estado de Direito? Pode manter-se no lugar um juiz de um tribunal superior que invoca a Bíblia, a Sharia, a legislação de há um século, para compor e fundamentar um acórdão?
Os juízes por força de estatuto são irresponsáveis e inamovíveis. Mas tudo tem um limite. Neste caso, foi amplamente ultrapassado.
Comments
Brilhante, Alice. Um abraço.
Brilhante, Alice. Um abraço. Maria
Obrigada por este comentário!
Obrigada por este comentário!
Este acórdão e respectivo Juiz parecem-me um verdadeira pesadelo!!!
Temos todas/os o supremo dever de nos indignar contra estas decisões atentatório da dignidade, segurança, direitos das mulheres e a educação das gerações futuras!
Para isto não pode haver impunidade!
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