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Como queremos ser lembrados?

Se como aqueles que fizeram por estar à altura do que o momento exigia, ou aqueles que falharam quando os seus familiares, vizinhos e populações pediam muito mais e melhor?

A chuva chegou, mas não lava as mágoas. O que aconteceu foi terrível, brutal. A seca do país foi extraordinária, o calor em outubro absolutamente anormal, o vento assustador, tudo isso é verdade. Mas nada disso pode normalizar a morte de mais de cem pessoas, desde junho. O estado falhou em questões essenciais, a defesa e proteção das populações.

A angústia com a incapacidade de comunicar com os familiares, de quem não se sabia se estavam em perigo ou não; a eletricidade que falhou ainda antes do incêndio chegar; as torneiras de água que nada deitavam apesar das chamas que se aproximavam; o momento de deixar as habitações à sua sorte na luta contra o fogo. Estas são memórias de uma experiência aterradora que milhares de pessoas carregarão para o futuro.

Nenhum país devia assistir à morte dos seus em situações tão difíceis como as que aconteceram nos passados dias. As pessoas que perderam a vida em Portugal pedem mais do que o nosso pesar para respeitarmos a sua memória. As centenas de feridos pedem mais do que a solidariedade. As populações que viveram o sobressalto do fogo avassalador pedem mais do que a repetição de discursos gastos. Pedem, em primeiro lugar, a resposta imediata para recuperar habitações, comunicações, tecido produtivo. Em segundo lugar, pedem responsabilidade sobre o que aconteceu.

A responsabilidade é de muitos governos, incluindo o atual. A saída da ministra da Administração Interna era inevitável face aos acontecimentos, mas não resume as responsabilidades políticas existentes. Acima de tudo, assume-se como a derrota das estratégias que durante décadas estruturaram o modelo de proteção civil. A responsabilidade é dessas políticas e elas também devem ser demitidas.

Muito mudou ao longo do tempo, mas as mudanças não tiveram consequência na atualização das políticas de proteção e combate aos incêndios ou de ordenamento florestal. O absurdo constata-se nos postos de vigia vazios e encerrados a partir de 30 de setembro, porque "sempre se fez assim", apesar da temperatura da primeira quinzena de outubro ser anormalmente alta. O "sempre se fez assim" mostra uma rigidez de pensamento que é incompreensível quando as alterações climáticas nos batem à porta diariamente.

Se muito falhou, porque se continuou a fazer igual? Em 2014, depois de uma comissão ter estudado longamente os fogos e ouvido inúmeros especialistas, o Parlamento aprovou uma recomendação para articular defesa da floresta e combate aos fogos, e estudar as novas exigências provocadas pelas alterações climáticas. Nunca saiu do papel, tudo continuou igual.

O relatório sobre o incêndio de Pedrógão Grande aprofunda essa recomendação e vai mais longe: propõe concentrar numa mesma entidade a prevenção estrutural, a prevenção conjuntural e o combate aos incêndios. Isto significa que a mesma entidade seria responsável pelo ordenamento do território, a limpeza da floresta e caminhos, da vigilância e do combate. Este é a proposta que já está a ser implementada em Espanha, nos Estados Unidos ou na Austrália, países com problemas semelhantes mas muito menos área ardida, em termos relativos. Não pode continuar apenas no papel.

É claro que tem de haver coragem. É preciso não tremer perante os interesses instalados no nosso país, como sabemos que existem desde a gestão da floresta, até ao negócio do combate privado aos incêndios. O único interesse que tem de ser defendido é o interesse público de defesa das populações.

É por isso incompreensível a forma como CDS e PSD querem aproveitar este debate para vantagens partidárias. O CDS apresentou uma moção de censura ao governo e logo o PSD, para não ficar atrás, exigiu uma moção de confiança. Ambos, contudo, rejeitam assumir o seu legado da monocultura do eucalipto, da extinção dos serviços florestais, do encerramento de serviços públicos que ainda agudizaram mais o abandono do interior. Oportunismo, claramente. Cair neste jogo partidário corriqueiro é falhar no debate essencial.

Temos de responder como queremos ser lembrados daqui a cinco, dez ou 50 anos. Se como aqueles que fizeram por estar à altura do que o momento exigia, ou aqueles que falharam quando os seus familiares, vizinhos e populações pediam muito mais e melhor?

Artigo publicado no “Diário de Notícias” em 19 de outubro de 2017

Sobre o/a autor(a)

Deputado, líder parlamentar do Bloco de Esquerda, matemático.
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