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Os incêndios vão repetir-se. Que não se repita a tragédia

Depois da tragédia vem o luto e só depois a ação, têm repetido. É preciso que a espera se estanque em mudanças profundas e corajosas. Alterações de estrutura de comando, de governo e de ministérios.

Nos últimos dias e noites, milhares de pessoas viram-se abandonadas à sua sorte enquanto tentavam proteger aldeias, casas, pessoas e animais. Sem bombeiros, sem respostas, sem eletricidade nem telecomunicações, a muitas delas restou olhar para o céu e pedir chuva. Mas rezar pela chuva é um ato de fé de um crente, não pode ser um sistema de resposta a uma vaga de incêndios tão destrutiva como a do passado fim de semana.

Podemos e devemos continuar à procura de explicações e responsáveis por Pedrógão Grande. Mas desta vez torna--se impossível nomear todas as aldeias, freguesias e concelhos atingidos pelo inferno em que se transformou o pior dia do ano. O que isso diz, ou melhor, confirma, é que não há nada de conjuntural ou episódico nestas tragédias. Todas elas foram infelizes coincidências entre fenómenos da natureza, ação criminosa ou negligência humanas e muito combustível. Uma teia de acasos tão preenchida que forma um padrão.

Se a partir de junho saltou à vista a necessidade de uma profunda reforma da floresta, agora percebemos que há mesmo um problema estrutural no sistema de combate aos incêndios. O primeiro-ministro tem razão ao afirmar que fenómenos destes vão repetir-se no futuro. Mas tem a obrigação de garantir que tragédias destas ficarão na memória distante de um tempo em que o Estado falhou.

Claro que é preciso apurar responsabilidades em cada caso concreto. As perguntas sobre o que aconteceu na estrada da morte, como deflagrou o incêndio, que nível de alerta era adequado às condições climatéricas deste outubro, todas têm de ter rapidamente resposta. Que se apurem responsabilidades e que se demita quem tiver as assumir.

Mas não façamos desta tragédia uma inconsequente caça às bruxas. Se aprendemos alguma coisa com Pedrógão, agora é tempo de o provar. Evitemos tentações de aproveitamento político e procuras vertiginosas de bodes expiatórios. Para além das responsabilidades imediatas, as soluções estarão nas mudanças mais difíceis e mais corajosas. As que implicam mais dinheiro, mais confronto com interesses instalados e uma intervenção do Estado muito mais musculada e competente.

É preciso afrontar um modelo que se revelou ineficaz e insuficiente. Tem de haver uma explicação para que, comparando com os piores anos da década, este seja o que tem menos área ardida, mais meios disponíveis mas também mais vítimas mortais. Não vale a pena fingir que toda a gente já sabia tudo. Quem é que, até este ano, levantou a sua voz para questionar se devemos entregar quase todo o combate aos incêndios a um serviço voluntário, homens e mulheres cuja coragem e extraordinário valor não substituem a eficácia de um sistema profissionalizado, moderno e científica e tecnicamente preparado?

Quem, antes destas tragédias, é que teve a coragem para dizer basta às celuloses e à plantação de eucalipto? Quem é que lançou um debate público sobre a proteção civil? Quem é que se chegou à frente para para impor intervenções compulsivas na floresta, para dizer que a propriedade privada de uns não pode ser a morte de muitos?

Depois da tragédia vem o luto e só depois a ação, têm repetido. É preciso que a espera se estanque em mudanças profundas e corajosas. Alterações de estrutura de comando, de governo e de ministérios. A ministra terá de cair1, mas que seja por consequência de uma revolução na estrutura de proteção civil, de ordenamento da floresta e de combate a incêndios, não como bode expiatório para que fique tudo na mesma. E que seja a tempo de evitar a próxima tragédia. Esse é o único compromisso que todas e todos queremos ouvir.

Artigo publicado no jornal “I” em 18 de outubro de 2017


1 Artigo publicado antes da demissão da ministra da Administração Interna, Constança Urbano de Sousa.

Sobre o/a autor(a)

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
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