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Ouçam, camaradas

Durante anos, os setores mais tonitruantes da direita e do Partido Socialista tentaram tutelar a projeção pública do Bloco e do PCP.

As narrativas banais produzidas por uma rede cuidada de comentadores foram o seu principal instrumento. Na oposição a Sócrates ou a Passos, o PCP foi caricaturado como o partido previsível, acostumado às lides institucionais e provedor de um sindicalismo bem comportado. Esta narrativa teve sempre por base a contraposição com a caricatura do Bloco como partido juvenil, irresponsável e agitadiço. A seu tempo, os próprios Marcelo e António Costa foram subscritores destas teses, com o primeiro a elogiar as “ordeiras manifestações da CGTP” nos tempos da troika e o segundo a invocar a rutura na Câmara Municipal de Lisboa para atacar o Bloco. Tudo isto aconteceu numa galáxia não muito distante.

Na cartilha do centrão, esta contraposição sistemática entre Bloco e PCP era sobretudo evidente nos momentos de crise. Perante o sempre anunciado falhanço eleitoral, o Bloco pereceria de morte certa e irreversível, enquanto o PCP se agigantaria perante a sua gente, fazendo valer os seus pergaminhos. O primeiro seria, nesta narrativa, refém da massa urbana, inconstante, assaltada pela súbita indisposição com o PS; o segundo, um pesaroso transportador do passado militante, preso ao compromisso de um eleitorado exíguo mas fiel.

Quantas vezes ouvimos esta história?

Com a nova geometria parlamentar, porém, inaugurou-se a fase bipolar da direita portuguesa. Ora uma semana o PS era acusado de estar rendido aos fervores extremistas da esquerda parlamentar, como na seguinte, Bloco e PCP eram desmascarados na sua captura ao centro pelo mesmo PS. Há quem tenha ensaiado uma versão mais refinada deste amassamento à esquerda, com Manuel Alegre a elogiar a boa vontade de António Costa em aniquilar o “arco governativo”, não fosse a nova solução de governo uma condição indispensável à sobrevivência do próprio PS.

Chegados às autárquicas, eis que uma terceira versão, subscrita por vários quadrantes, emerge do rescaldo eleitoral: a derrota do PCP irá, inevitavelmente, prejudicar o entendimento e a ação do governo nos próximos dois anos. O que antes era uma segurança - a resiliência do PCP em face da erosão eleitoral - é agora um problema. Parte desta leitura reside no descontrolo de comunicação demonstrado pelo PCP nos primeiros dias de outubro, com Jerónimo de Sousa a atacar a imprensa por esta refletir o ataque ao Bloco e ao PS plasmado na resolução pública do próprio comité central. Mas quero aqui concentrar-me em duas explicações apresentadas por dois comentadores insuspeitos.

Teresa de Sousa, no seu artigo do Público, defende que “Os comunistas foram atingidos, como teriam de ser um dia, pela volatilidade do voto, num contexto em que o pragmatismo do eleitorado pesa mais do que as velhas ideologias. Por culpa própria, e não do PS. As caras mais jovens, saudadas como um sinal de renovação, não são nada disso. O discurso é exatamente o mesmo, no tom, nas palavras, nas ideias.” O problema do PCP seria, portanto, um discurso ortodoxo perante um eleitorado que anseia por soluções pragmáticas. Difícil de compreender. Não tem sido precisamente o pragmatismo da “devolução de rendimentos” e da melhoria das condições populares a marca discursiva do PCP nestes últimos dois anos? Haverá prática mais pragmática do que a política de alianças do PCP nas autarquias locais? Nada disto parece fazer muito sentido.

Daniel Oliveira, por sua vez, aponta outras causas, “O PCP suporta um governo que está a tomar as medidas que tiram votos aos comunistas. Não porque as pessoas estejam descontentes, mas porque estão satisfeitas. PCP e BE ficaram de fora do governo para não serem responsabilizados pelas suas derrotas. Não estão a ser responsabilizados pelas suas vitórias.” Pondo de lado o elogio da manobra (a participação num governo como um exercício tático de acumulação de votos), Daniel Oliveira avança uma explicação arriscada: a não participação no governo protege Bloco e PCP nas decisões mais desagradáveis mas fustiga-os quando este alcança vitórias que não podem reivindicar. Pois muito bem. Se assim é, impõe-se perguntar por que razão então, no mesmo contexto e na mesma posição, o PCP perde expressão nas presidenciais e nas autárquicas, enquanto o Bloco se reforça nas duas ocasiões?

A resposta a esta questão é indissociável das raízes históricas de cada partido e do seu projeto para o país, além de causas conjunturais. Conhecemos as nossas diferenças no plano internacional, na forma de organização partidária e em questões centrais de direitos individuais e coletivos. Não é assunto que caiba neste contributo. Concentro-me, antes, em três razões que se ligam diretamente às escolhas de condução política do PCP nos últimos dois anos e que explicam, a meu ver, muitas das suas atuais dificuldades.

Primeira razão: a recusa num acordo a três. O acordo com o PS não pode ser uma palavra maldita. Existe, é percecionado como tal pelas pessoas todos os dias e cada um dos partidos tem tido o cuidado em explicitar os contornos da sua assinatura. Mas na sua forma, foi uma oportunidade perdida para a esquerda. Ao recusar conversas e negociações a três (PS, Bloco e CDU), acicatando uma competição sectorial pelas bandeiras a avançar por cada um, o PCP legitimou a posição do PS como elemento mediador das soluções entre os partidos e destes com os vários sectores da sociedade. O partido no governo teria sempre essa posição à partida, mas a explicitação escrita e negocial da convergência existente em inúmeras matérias entre Bloco e PCP reduziria em muito esse vantagem, evitando o adiamento crónico na aprovação de algumas medidas.

Segunda razão: transformar vitórias em derrotas. O primeiro outdoor do PCP após as eleições autárquicas é o exemplo acabado de como se podem transformar vitórias e conquistas em derrotas políticas: a defesa dos 600 € de salário mínimo nacional (SMN) já em 2018. Não se trata aqui de discutir o tempo ou o valor que é, ainda assim, objetivamente insuficiente para as necessidades mais básicas de quem vive do seu trabalho. A questão é outra. Se há conquista que o Bloco se pode orgulhar de ter imposto ao PS e à União Europeia é a elevação do SMN: com a subida para 580€ em janeiro de 2018, falamos de um aumento bruto de 1050 euros anuais em apenas três anos para quem recebe o SMN, com a garantia de que doze meses depois alcança os 600 euros. É simplesmente o instrumento mais poderoso de aumento dos rendimentos mais baixos.

Dir-me-ão que a bandeira dos 600 euros imediatos, sendo justa e necessária, é uma imagem de diferenciação dentro das vias abertas por esta solução de governo, uma forma de mostrar que é possível ir mais além e mais rápido. Poderá até ser, mas o problema continua a ser outro. A aplicação dos 600 euros em janeiro próximo seria inteiramente justa, e por isso o Bloco a aprova. O que a esquerda não deve fazer é abdicar perante as pessoas de assinalar a subida já estipulada como uma conquista do milhão de votos à esquerda, esquecendo o que foi, à partida, uma cedência do PS e uma conquista da esquerda, para não permitir ao governo passar entre os pingos da chuva no que diz respeito às questões de salário e emprego.

Isto porque existe hoje um acordo tácito entre o governo do PS e os patrões nesta matéria: o salário mínimo aumenta e as leis laborais da troika não se alteram. Este foi o resultado político assumido e orquestrado pelo PS depois da polémica com a redução da TSU, chumbada no parlamento. António Costa aparece, uma vez mais, como o mediador entre as propostas da esquerda e os ímpetos do patronato por mais contenção salarial. Para responder a esta política, a esquerda ganha, pelo contrário, quando torna claras as vitórias impostas sobre o PS: pensões, salários, política fiscal. E, assim abre caminho para concentrar o seu fogo sobre a alteração das leis laborais.

Terceira razão: ao partido o que não é do partido. O exemplo mencionado acima demonstra como o fechamento institucional das propostas garante a afirmação panfletária mas não a sua concretização e avanço efetivo. Em muitos setores, a subida do SMN ocorre ao mesmo tempo que se desenvolve uma pressão patronal no sentido de cortar os prémios e incentivos, sobretudo nas áreas em que a contratação coletiva foi eliminada. Nesta e em outras questões fundamentais da legislação laboral - reposição dos valores nas horas extraordinárias e das indemnizações por despedimento, as 35 horas para todos, a forte limitação do outsourcing - é necessário não só solidificar um campo de proposta parlamentar comum, como gerar uma resposta mobilizadora entre quem vive do trabalho e do seu salário. Sim, precisamos falar sobre o estado do sindicalismo neste país.

Nestes dois anos, o PCP persistiu em fortalecer a sua matriz de referentes tradicionais sem que a isso se somasse um impulso à criação de redes de mobilização e aprendizagem nas lutas. Um partido que fala muito para os seus esquece-se, inevitavelmente, de aprender com quem está lá fora. O processo de integração dos precários do Estado é o melhor exemplo dessa escolha. Perante a oportunidade histórica de atacar a precariedade no Estado, estabelecendo uma lição a ser seguida pelo privado e gerando um impulso de organização e auto-conhecimento de novas camadas de trabalhadores, o PCP tratou o assunto como se de um quid pro quo de gabinetes se tratasse, exigindo a integração administrativa. Ora, o papel de um partido de esquerda não é ser um mediador de conflitos e interesses particulares no seio do Estado. As mudanças significativas precisam de um instrumento de aceleração, aprendizagem e confluência de lutas comuns, que vão muito para lá do aparelho e das suas redes orgânicas.

Haverá, é certo, um problema de discurso e da sua desconexão com a prática no PCP, como existe, aliás, em menor ou maior grau, em todos os partidos. Cabe às suas direções e militantes resolvê-los. À esquerda, cabe ter a pressa em ouvir e em apontar caminhos.

Sobre o/a autor(a)

Sociólogo, dirigente do Bloco de Esquerda e ativista contra a precariedade.
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