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No gueto não me apanham!

Que sentido faz uma proposta que tem como solução a criação de um gueto para acantonar a maioria dos utentes dos transportes? Que sentido tem rotular mulheres como tementes do espaço público?

Foi com estranheza que tive conhecimento da proposta que Joana Amaral Dias, candidata à presidência da Câmara de Lisboa pelo movimento Nós, Cidadãos, fez para combater o assédio sexual nos transportes públicos. A sua proposta passa por criar espaços reservados a mulheres nos transportes públicos, sendo que a existência deste espaço não obriga as mulheres a viajarem nele, é antes uma escolha que podem fazer.

Em meu entender, a proposta é tonta e não serve os propósitos a que aparentemente procura responder: defender as mulheres do assédio nos transportes públicos.

Segundo o estudo qualitativo sobre os transportes públicos na Área Metropolitana de Lisboa (AMTL/ISCTE 2014), a maioria dos utentes dos transportes públicos são mulheres.

Segundo o estudo qualitativo sobre os transportes públicos na Área Metropolitana de Lisboa (AMTL/ISCTE 2014), a maioria dos utentes dos transportes públicos são mulheres.
Segundo o estudo qualitativo sobre os transportes públicos na Área Metropolitana de Lisboa (AMTL/ISCTE 2014), a maioria dos utentes dos transportes públicos são mulheres.

Que sentido faz, então, uma proposta que tem como solução a criação de um gueto para acantonar a maioria das utentes dos transportes? Que sentido tem rotular mulheres como tementes do espaço público? Que sentido tem propor que a cidade reconheça as mulheres como vítimas indefesas? A determinação de uma cidade não deve ser, ao invés, a de capacitar as mulheres – e os homens – para que estas reconheçam e repudiem o assédio como agressão intolerável?

Ainda há pouco tempo uma enorme polémica andou nas bocas do mundo: a ousadia da Câmara Municipal de Madrid que decidiu colar nos autocarros um autocolante que sinalizava o manspreading (o hábito masculino de viajar com as pernas abertas nos assentos) como comportamento censurável. Caiu o Carmo e a Trindade, mas tenho para mim que um simples autocolante que visibilize comportamentos censuráveis é mais eficaz do que a criação de guetos.

Há muitos anos, participei numa discussão/exposição – Pink Lotion –, organizada pelo coletivo feminista Zoina, que se debruçava precisamente sobre o assédio em espaço público. Uma das nossas ideias era a de que calar é sempre a pior solução, que os casos de assédio tinham de ser denunciados e que o enxovalho público do assediador era um instrumento de luta fantástico. Um dia experimentei levar a teoria à prática. Não foi preciso esperar muito. Num autocarro, fui incomodada por um homem que se começou a encostar a mim. Fiz o que tinha aprendido nessa discussão. Espetei-lhe o alfinete de ama que levava comigo – a minha arma branca - e armei uma enorme escandaleira. Perguntei-lhe com os decibéis necessários para que todo o autocarro pudesse ouvir se não tinha vergonha de se estar a roçar em mim. Naturalmente, procurou um buraco para se esconder. O autocarro ergueu a sua voz indignada para condenar o assediador, que não teve outro remédio senão sair na paragem seguinte. Acontece que me custou imenso fazer aquilo, ia sozinha e não sabia qual seria o resultado. O que hoje sei é que não é de heroínas que o mundo precisa, de mulheres que arriscam sozinhas; o mundo precisa é de gente consciente e organizada, gente que pensa e age coletivamente para mudar o que está mal, em favor de todas e onde cada qual está incluída. O que é preciso é sabermos o que é o assédio, sabermos que ele não é contra mim ou contra ti, mas contra todas, que é violência de género. O que precisamos é de não o desculpar, de lhe dar visibilidade, de mostrar que ele existe e nos incomoda todos os dias. E as autarquias podem, de facto, ser parceiras neste combate, seja através do redesenhamento de uma nova Carta Educativa ou de autocolantes nos transportes públicos que visibilizem comportamentos censuráveis pela comunidade. O que é preciso é que as autarquias se comprometam com uma agenda para a igualdade.

No gueto, a mim não me apanham, porque quem precisa de ser mandado para o gueto são os assediadores, não as vítimas.

Sobre o/a autor(a)

Editora, ativista feminista, membro do coletivo feminista A Coletiva
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