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Quem governa a saúde? Os media, claro...

Só se resolvem problemas graves no SNS, quando alguém morre ou fica doente e a comunicação social decide denunciar.

Nos últimos 4 anos conhecemos 3 casos de mortes evitáveis, cuja responsabilidade pode, sem margem para dúvidas, ser atribuída a insuficiências do nosso serviço de saúde. Estas 3 mortes, diferentes no contexto, têm 2 elementos em comum: todas foram causadas por falhas que já tinham sido previamente identificadas e denunciadas oficialmente e todas foram rápida e eficazmente resolvidas no momento em que se tornaram mediáticas pelas mortes que causaram.

Em 2016 morreu José Boavida, ator conhecido que sofreu uma paragem cardiorespiratória na via pública, perto de casa. Encontrava-se apenas a 1800 metros do Hospital Amadora-Sintra mas teve de esperar pela Viatura Médica de Emergência e Reanimação (VMER) do Hospital S. Francisco Xavier que estava a 11 km do local, para ser reanimado. Acabou por morrer já no hospital na sequência de lesões cerebrais sofridas durante o tempo em que teve o coração parado. Não existia VMER no Hospital Amadora-Sintra. Por tratar-se de uma figura pública, o caso foi mediatizado e a família de José Boavida questionou-se sobre a inexistência de uma VMER naquele hospital. Num despacho publicado 4 anos antes (Despacho n.º 13794/2012), pelo então secretário de Estado da Saúde, Fernando Leal da Costa, constavam as regras para alocação deste tipo de viaturas: “As AEM (ambulâncias de emergência médica) são sediadas nas localidades com Serviços de Urgência Polivalente (SUP) e Serviços de Urgência Médico -Cirúrgica (SUMC);”. O que significa que o Hospital Amadora-Sintra tinha obrigação de ter uma VMER. Tal como o Hospital do Barreiro. Mais se podia ler no despacho: “Os meios de emergência pré-hospitalar a criar iniciam a sua atividade no prazo de três anos a contar da data da produção de efeitos do presente despacho”. O que significa que à data da morte de José Boavida, o Hospital Amadora-Sintra estava em incumprimento legal há pelo menos um ano, por não dispor da referida viatura. Mais tarde ficamos a saber que as não existentes VMER do Amadora-Sintra e do Barreiro já estavam sinalizadas há mais de 10 anos como uma lacuna grave a resolver. Dois meses depois da morte mediatizada de José Boavida são inauguradas as VMER do Amadora-Sintra e do Barreiro. Um ano depois a VMER do Amadora-Sintra era a viatura médica com mais ativações em todo o país, o que demonstra bem a sua necessidade premente.

No final de 2015 morria no Hospital de S. José o jovem David Duarte com rutura de um aneurisma cerebral. O caso ficou conhecido do público no momento em que se percebeu que aquele hospital, ou qualquer outro na área de Lisboa, não dispunham de profissionais para realização de um procedimento médico que poderia ter salvo a vida do jovem, durante o fim de semana. O caso adensou-se ainda mais quando se descobriu que a ausência de uma escala de profissionais para tratarem estas situações nos finais de semana se devia aos cortes impostos pelo então Ministério da Saúde, em virtude do programa austeritário da troika. E esta situação tinha já 2 anos. Entretanto sabe-se que durante esses dois anos, foram feitas várias tentativas junto da tutela, por parte do hospital, para colmatar a falha, tendo sempre sido negada a resolução da mesma. Tivemos mais tarde a informação que houve uma proposta do Ministério da saúde para resolver o problema e que foi chumbada pela então Ministra das Finanças, Maria Luís Albuquerque. Um ano antes da morte do David, tinha sido publicada uma notícia a denunciar a situação num grande jornal diário que passou despercebida. Um mês depois da mediatização deste caso, o problema foi revertido de forma célere e Lisboa passou a dispor de 4 centros com capacidade para realizar os referidos procedimentos durante o fim-de-semana. Durante dois anos foi identificado e denunciado o problema mas só com a morte mediática do David é que ele foi rapidamente resolvido.

Em 2014 foram introduzidos no mercado europeu novos medicamentos para tratar a hepatite C. Estes medicamentos foram verdadeiramente inovadores, uma vez que permitem elevadas taxas de cura com poucos efeitos secundários e representam esperança para muitos doentes que sofrem há anos com os danos causados por este vírus, responsável por muitas mortes. O problema foi que as farmacêuticas que os comercializam exigiram na altura pagamentos exorbitantes, levando os diferentes estados europeus a encetarem difíceis negociações para a redução dos preços. Em Portugal, essas negociações prolongaram-se durante aquele ano e o seguinte. Em fevereiro de 2015, durante uma audiência parlamentar ao então Ministro da Saúde Paulo Macedo, um doente com hepatite C abriu todos os noticiários da hora do jantar quando se levantou e pediu ao Ministro: “Não me deixe morrer”. Ficámos a saber nessa altura que poucas semanas antes tinha morrido uma mulher à espera dos medicamentos, à espera que as negociações entre governo e farmacêutica vissem fumo branco. Menos de 48 horas depois das notícias e após mais de um ano de negociações, o Ministro autorizava a introdução dos medicamentos no mercado português.

No final de março de 2017, os órgãos de comunicação social davam a conhecer um surto de hepatite A em Portugal. Nessa altura a Direção-Geral de Saúde (DGS) convoca uma série de reuniões de emergência para dar resposta ao caso e inicia um plano de vacinação em massa dirigido a pessoas consideradas em risco. À medida que as notícias iam saindo em catadupa, ficamos a saber que o surto estava identificado em vários países Europeus há, pelo menos, um ano e que o Centro Europeu de Vigilância Epidemiológica ECDC alertou as autoridades europeias, incluindo as Portuguesas, para este surto em agosto de 2016. Os primeiros casos em Portugal começaram a ser notificados em dezembro de 2016. Mas só já no final de março e com a divulgação pública do surto pelos media é que foram tomadas as primeiras medidas para conter a infeção – a DGS convoca a primeira reunião de emergência no espaço de 24 horas depois de saírem as primeiras notícias. Não foram tomadas quaisquer medidas preventivas nos 9 meses anteriores em que o ECDC tinha alertado as autoridades de saúde Europeias.

Estes 4 casos ocorreram no espaço de 3 anos e envolveram 2 Ministros diferentes, de 2 Governos diferentes e uma direção-geral. Em nenhum deles houve culpados definidos, embora seja evidente que estas mortes surgem por “incapacidade política” ou “incompetência governativa” (no caso do David houve mesmo uma “decisão” das finanças de não resolver o problema). Não deveriam ter transitado para a esfera criminal? Por outro lado, eles são muito claros na mensagem que transmitem: só se resolvem problemas graves no SNS, quando alguém morre ou fica doente e a comunicação social decide denunciar. Se a vítima for uma figura pública, melhor. Se a notícia se propagar que nem fogo, melhor ainda.

Quando terão perdido os responsáveis políticos desta área a noção de prioridade e urgência? Será que nas escolas de Gestão em Saúde ensinam isto mesmo: que só se devem resolver problemas quando eles saem nos jornais? Quantos mais casos de “falhas graves” existem, cuja resolução se arrasta no tempo, só porque a comunicação social não as detetou ainda? Onde não chega a comunicação social, qual é a capacidade de escrutínio e denúncia de quem é atingido por estes “problemas”?

Sobre o/a autor(a)

Médico neurologista, ativista pela legalização da cannabis e da morte assistida
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