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Educação: a Inclusão e a sua circunstância

Na óptica dos princípios legislativos, parece haver base para se afirmar que, na Escola, a inclusão é, mas é mesmo, um facto. Só que não é por estar (re)escrita e (re)publicada que a Lei verdadeiramente existe...

“Eu sou eu e a minha circunstância
e se não a salvo a ela não me salvo a mim”
José Ortega y Gasset
(Meditaciones del Quijote)

Algazarra alegre e irreverente junto ao portão das escolas. As aulas de novo lectivo no ensino básico e secundário (re)começaram.

Essa algazarra e alegria à saída das aulas projecta-nos a ideia de pertença à escola e de socialização dessas crianças e adolescentes, independentemente das diferenças (físicas, psicológicas, sociais, culturais, económicas, etc.) que possam existir entre elas,. Enfim, projecta-nos o pressuposto de inclusão existente nessa escola, seja ela qual for.

Inclusão. Um conceito que é ao mesmo tempo um princípio. E muito caro à democracia, sistematicamente invocado na análise e perspectiva social, no discurso político e na letra da Lei.

No domínio da Educação, e concretamente da Escola Pública, é também esse princípio da Inclusão que, legislativamente, se tem desenvolvido numa perspectiva de “especial” incidência nos alunos com dificuldades (de ordem psíquica ou física ou, mesmo, de multideficiência) de aprendizagem mais marcantes, os alunos com as chamadas ”necessidades educativas especiais” (NEE).

Desde a Lei de Bases do Sistema Educativo, de 1986i, passando por alguma legislação dos anos 90 (que alargou a resposta educativa “especial” a dar a estes alunos também ao ensino particular e cooperativo), até, desde 2008, à regulamentação actualmente em vigor.(Decreto-Lei Nº 3/2008, de 7 de Janeiro e sua regulamentação).

Mais estruturado e estruturante, este decreto-lei de 2008 ancorou-se com mais sustentação na noção de “escola inclusiva” projectada, dezena e meia de anos antes, pela Declaração de Salamanca, de 1994ii.

Nesta convenção internacional, já se destaca a proclamação do “princípio de educação inclusiva em forma de lei ou de política, matriculando todas as crianças em escolas regulares, a menos que existam fortes razões para agir de outra forma”.

Aliás, outros suportes normativos internacionais são passíveis de serem invocados para sustentar este princípio (e prática) da inclusão na Escola no sentido de que todos os alunos, independentemente das suas (sempre) “especiais” diferenças (desta ou daquela natureza, mais ou menos acentuadas), tenham direito e usufruam da satisfação das suas necessidades educativasiii.

Passados praticamente 10 anos, está aí agora em discussão pública (até 30 de Setembro de 2017) um projecto de novo diploma (Decreto-Leiiv) que se propõe revogar o Decreto-Lei Nº 3/2008 no sentido de “(…) garantir a inclusão, enquanto processo que visa responder à diversidade das necessidades, de todos e de cada um dos alunos, através do aumento da participação na aprendizagem, na cultura escolar e na comunidade educativa”.

Há já bastante debate (representantes de professores, de pais e encarregados de educação, da academia envolvida neste domínio, de outras entidades) sobre este novo diploma (defendendo ou atacando a sua bondade) e não se tem a mínima pretensão de, aqui, se emitir qualquer opinião nessa perspectiva.

O que interessa aqui concluir é que, nestas mais de três dezenas de anos, neste domínio, do ponto de vista legislativo, se passou dos conceitos de “alunos portadores de deficiência” para o de “necessidades educativas especiais” (NEE) e, agora, mais assumidamente, para o de “escola inclusiva”.

E no plano dos princípios, do de ”integração” para o de “inclusão de cada um” (cada um com todos) e, agora, para o de universalização da inclusão (“de todos e de cada um”).

Então, na óptica dos princípios legislativos, parece haver base para se afirmar que, na Escola, a inclusão é, mas é mesmo, um facto, já que tanta legislação existe a sustentá-la. Já que tão vincadamente está (legalmente) escrita.

Só que não é por estar (re)escrita e (re)publicada que a Lei verdadeiramente existe mas, sim, por ser efectivamente aplicado o seu espírito (que não apenas a sua letra).

De algum modo, como a quanto a qualquer outro domínio (saúde, justiça, trabalho, segurança, etc), talvez se possa afirmar quanto à inclusão educativa que se há o risco de não termos inclusão por não termos Lei, também risco há de não “termos” (realmente) Lei por não termos (realmente) inclusão.

Isto porque, na Educação, “encontramos frequentemente um enorme descompasso entre o que as instituições dizem e as práticas que desenvolvem”, “o que está escrito não está cumprido”.

Citei, no parágrafo anterior, o professor David Rodrigues (presidente da Pró – Inclusão – Associação Nacional de Docentes de Educação Especial), num artigo publicado no último número (volume 8 –Nº 1, de Julho de 2017) da revista “Educação Inclusiva”v, de que é director, artigo esse ao qual se voltará mais à frente.

De facto, é sintomático que, passados estes anos e todo este desenvolvimento legislativo e regulamentar, ainda não há um mês, a presidente da associação Pais-Em-Rede (“Organização Não Governamental para Pessoas com Deficiência”, com âmbito nacional, constituída em 2008, cujos associados são justamente pais de alunos com “necessidades educativas especiais”), Luísa Beltrão, a propósito do referido projecto de novo diploma no domínio da inclusão educativa, assumiu publicamente que “nem sequer a lei ainda em vigor (Decreto-Lei Nº 3/2008, atrás referido) foi desenvolvida na maioria das escolas”. E, mais, que “não há uma única escola em Portugal que consideremos inclusiva”, “num sistema de ensino que não foi capaz de cumprir coisas básicas e continua a marginalizar estas crianças”. (jornal Público, 18 de Agosto de 2017vi).

E é aqui que convocamos Ortega y Gasset, quanto às “circunstâncias”. As “circunstâncias” da inclusão, claro.

Nesse tal artigo no último número da revista “Educação Inclusiva”, com o estranho (ou talvez não…) título de “Inclusão: escrever movendo a folha”, o professor David Rodrigues parte de uma estória com base na qual, depois, desenvolve a sua perspectiva sobre a inclusão educativa.

Numa reunião de professores de uma qualquer escola, quase todos os presentes se mostravam desanimados e resignados com o “caso severo” de necessidades educativas especiais de uma aluna com paralisia cerebral. Por esta condição, a aluna tinha a capacidade de preensão muito reduzida e só com muita dificuldade conseguia segurar o lápis na mão. E, assim, apesar de saber ler e entender frases simples, não conseguia escrever o seu nome por não poder mover o lápis no papel. E porque também o computador pedido para o caso nunca mais chegava, todos os professores já se encontravam resignados à situação.

É então que um professor “novato”, inexperiente, arriscou propor: “Desculpem lá, mas se ela não mexe a caneta para escrever o nome, talvez ela o possa escrever se lhe mexermos o papel”.

Esta estória serve ao professor David Rodrigues para, depois, concluir que a inclusão não é só “intervenção sobre o aluno, é também sobre os envolvimentos”.

Ou seja, emerge daqui a ideia de que o que está em causa na inclusão não são “só” as “necessidades educativas especiais” (NEE) dos alunos mas, também, as correspondentes “necessidades especiais da Escola” (NEE).

E é nesse sentido que na inclusão de alunos com “necessidades educativas especiais” todo o trabalho educativo e socio-educativo propriamente dito que individualmente lhe é dispensado não pode ser dissociado (quer como factor, quer como resultado) do “envolvimento”, das “circunstâncias” de (toda) a Escola.

E isto leva então a perguntar-se (ainda que de uma forma genérica, sem prejuízo de, sendo-se mais concreto, se voltar a este tema num eventual próximo artigo) sobre esses “envolvimentos”, sobre essas “circunstâncias”, por exemplo: Que estruturas? Que meios materiais? Que pessoas (professores, técnicos, auxiliares operacionais) e sua suficiência, suas qualificações, capacidades (sensibilidade, motivação, determinação…) e condições de emprego e de trabalho? Que organização? Que gestão?...

E, sobretudo, pergunta mais importante: Que permanente e consequente cultura colectiva (sistemática e sistémica) de inclusão visando “todos e (com) cada um” e “cada um e (com) todos” dos alunos da Escola?

Neste sentido, em Educação e concretamente na Escola, a Inclusão plasmada na Lei (na actual e na futura) é ela e estas (e outras) “circunstâncias”. E se não (lhe) salvarmos as “circunstâncias”, não a salvamos a ela, à Inclusão.

A Inclusão e a sua circunstância.


i Lei 46/86, de 14 de Outubro (até à sua redacção actual, de 2005, foi objecto de várias alterações)

ii Esta Declaração mergiu da Conferência Mundial de Educação Especial, realizada, no âmbito da ONU (UNESCO), entre 7 e 10 de Junho de 1994.

iii Por exemplo: a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (e respectivo protocolo adicional), aprovada na AG da ONU em 30/3/2007 (aprovada por Resolução da AR e ratificada pelo Decreto do PR Nº 71/2009, de 30 de Julho; a Declaração de Lisboa sobre Equidade Educativa, aprovada no congresso internacional de 26 a 29 de Julho de 2015 sobre Apoio e Inclusão em Educação - http://isec2015lisbon.weebly.com/the-lisbon-educational-equity-statement.html

Sobre o/a autor(a)

Inspector do trabalho aposentado. Escreve com a grafia anterior ao “Acordo Ortográfico”
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