O que já mudou e o que falta mudar para quem tem uma vida inteira de descontos

porJosé Soeiro

29 de August 2017 - 21:11
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As medidas aprovadas permitem começar a reparar quem foi forçado ao trabalho infantil, num país em que uma parte significativa de uma geração começou a trabalhar aos 12, 13, 14 ou 15 anos.

Quem começou a trabalhar em criança e tem uma vida inteira de descontos vai poder finalmente reformar-se sem penalizações. A medida resulta de meses de negociações e as primeiras alterações entram em vigor em outubro. Mas estamos apenas a começar um caminho de justiça que tem ainda muito para andar.

Um passo importante para eliminar a injustiça

Vale a pena lembrar de onde vimos. Com o PSD e o CDS, a idade da reforma passou a aumentar todos os anos. Por outro lado, o chamado fator de sustentabilidade, que em 2011 significava um corte de 3%, passou a ultrapassar os 13% em 2015, chegando quase aos 14% em 2016. Para além dos cortes de 600 milhões ao ano que a Direita previa para as pensões, o anterior Governo levou ao extremo as penalizações. Para um caso típico de 40 anos de descontos e 60 de idade, a penalização era de 26% em 2011 e passou para 46% em 2017. No caso de um trabalhador que se reformasse em janeiro de 2016, com 55 anos de idade e 40 de carreira, o corte na sua pensão era de 71,4%. É isto que agora começa a mudar.

As medidas aprovadas permitem começar a reparar quem foi forçado ao trabalho infantil, num país em que uma parte significativa de uma geração começou a trabalhar aos 12, 13, 14 ou 15 anos, quando a escolaridade obrigatória não ia além da quarta classe. E fazem-no por quatro razões essenciais.

Em primeiro lugar, o regime agora aprovado é diferente da proposta inicial do Governo, que abrangia apenas quem tivesse mais de 48 anos de carreira contributiva, o que era um universo absolutamente residual. Por insistência da esquerda, o direito à reforma sem qualquer penalização aplica-se agora a todos os trabalhadores que começaram a descontar antes dos 15 anos e tenham, aos 60 anos, 46 anos de carreira contributiva. Em segundo lugar, para esse grupo de pessoas, é eliminado totalmente o fator de sustentabilidade. Em terceiro lugar, ao contrário da versão inicial do Governo, esta medida abrange os trabalhadores dos dois sistemas (regime geral de segurança social e também o regime convergente, isto é, a Caixa Geral de Aposentações). Finalmente, o fator de sustentabilidade é também eliminado para as pensões de invalidez, no momento da respetiva convolação em pensão de velhice. A proposta de acabar com esta penalização, apresentada pelo Bloco em outubro de 2016 e chumbada em março de 2017 (pelos votos contra do PS e do PSD), foi agora incluída no regime aprovado. Ou seja, valeu a pena a insistência.

A proposta não responde, contudo, à expectativa de muitas outras pessoas que têm uma vida inteira de descontos. Também para esses, que agora ficam de fora, é preciso que haja um novo regime de acesso à pensão. Para ir de encontro a esta exigência de justiça, devem ser dados passos concretos, sólidos e sustentáveis neste domínio.

Tanto por fazer – cinco propostas para valorizar as longas carreiras contributivas

A próxima fase deste regime, a concretizar em 2018, tem pois de ir mais longe. Desde logo, alargando o regime de reforma antecipada sem qualquer penalização a todos quantos começaram a trabalhar antes dos 16 anos e têm 60 anos de idade e 40 anos de carreira contributiva. Se o objetivo do regime é reparar quem foi empurrado para o trabalho infantil, então esta medida é elementar.

Em segundo lugar, o fator de sustentabilidade deve acabar para todos os trabalhadores que requeiram pensão antecipada, e para os desempregados de longa duração que se reformam ao abrigo desse regime especial. O fator de sustentabilidade foi criado num tempo em que a idade de reforma era fixa. Mantê-lo num contexto em que a própria idade de reforma tem variado em função da esperança média de vida (o que já implica penalizações por cada ano de antecipação) constitui uma dupla penalização absurda e ilegítima.

Em terceiro lugar, a valorização das longas carreiras contributivas não diz respeito apenas a quem começou a trabalhar em criança. Faz algum sentido que quem tenha carreiras contributivas acima dos 40 anos de descontos não tenha qualquer compensação? Não seria justo, no mínimo, que a idade legal de reforma fosse antecipada em 1 ano por cada ano de descontos para além dos 40?

Em quarto lugar, é preciso não esquecer as vítimas das regras da Direita que vigoraram entre 2014 e 2016. Quem foi levado ao pedido de reforma antecipada com extremas penalizações (até 71,4% do valor da pensão), deveria ter um complemento de reforma que, a título de correção, anulasse pelo menos o efeito da aplicação do fator de sustentabilidade no valor da sua pensão. Não fazê-lo seria condenar estes pensionistas a viverem o resto da sua vida com pensões de miséria.

E há, finalmente, todos os regimes de desgaste rápido. Nos últimos meses, tem-se debatido, por exemplo, a situação dos trabalhadores por turnos e da indústria das pedreiras. O desgaste intenso de trabalhos como estes não pode ser ignorado. Antecipar a reforma em função da penosidade de determinadas atividades é um mecanismo de compensação do que o trabalho faz à vida e ao corpo das pessoas.

Para cada uma destas propostas, as contas estão feitas. Agora, é preciso que haja vontade, coragem e que se façam escolhas.

José Soeiro
Sobre o/a autor(a)

José Soeiro

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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