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Metadados, diz-me com quem falas

A Lei que permite o acesso das secretas a metadados de comunicações e internet trata todos os cidadãos como suspeitos. Ao contrário do que disse o Presidente da República, é inconstitucional e não reúne “consenso jurídico”.

Oceania é a nação orwelliana onde se desenrola o romance Nineteen Eighty-Four (1984), um Estado totalitário em que a vigilância permanente é exercida por um omnipresente poder sem rosto e lembrada aos seus habitantes pelos cartazes que avisam “Big Brother is watching you”. Para além de inspirar programas de televisão de gosto discutível, o Big Brother de George Orwell tem sido referência simbólica para o debate sobre a cada vez maior capacidade de vigilância dos Estados sobre os seus cidadãos com pretextos securitários.

Em Portugal, o debate foi lançado recentemente devido à aprovação e promulgação pelo Presidente da República da Lei que permite o acesso das secretas a metadados de comunicações e internet. Para que se perceba melhor, estes dados incluem a data, a hora, a fonte, o destino, a localização, o equipamento ou a duração de uma comunicação. É uma constelação de informações que incluem tudo menos as palavras utilizadas numa comunicação, mas, em conjunto, permitem saber detalhes muito pessoais da vida de cada um, das infidelidades maritais às fidelidades políticas. Colocar essa informação nas mãos das secretas já não era boa ideia antes do péssimo exemplo dado pelo ex-espião silva Carvalho.

Quem defende a lei afirma que Portugal é o único país da Europa onde não há acesso de dados de comunicações que permitam dar eficácia às investigações. O argumento é falso, estes dados estão acessíveis à polícia de investigação criminal perante indícios criminais e são utilizados nos trabalho preventivo da Unidade Antiterrorista da PJ. Segundo a Constituição, a proteção da inviolabilidade das comunicações privadas já excepciona o âmbito de investigação criminal e da atividade dos tribunais. O problema desta lei é ultrapassar todos esses limites, razão pela qual ela é inconstitucional e não reúne “consenso jurídico”, ao contrário do que disse o Presidente da República.

Esta lei trata todos os cidadãos como suspeitos. O mesmo acontece com a Lei que regula a videovigilância, que passou a permitir captar e gravar som através das câmaras localizadas em espaços públicos, ou seja, ouvir as conversas de quem passa. Tal como nos metadados, o acesso a esta informação não depende de investigação criminal, mas vai ainda mais longe ao permitir que a escuta seja feita por decisão administrativa das forças de segurança.

A utilização massiva da vigilância é um recurso de Estado de Exceção que se vai normalizando e coloca questões essenciais sobre os limites do Estado de Direito e da garantia de direitos e liberdades individuais. Embora a preocupação pública com esta questão tenha estado subjugada à dramatização das medidas de combate ao terrorismo, o Big Brother não deixa de ser uma ameaça para o futuro das sociedades democráticas.

A vigilância permanente é apanágio de regimes ditatoriais que não toleram a liberdade de expressão. Considerando que a capacidade tecnológica de recolher e guardar dados sobre os cidadãos melhorou bastante desde os tempos em que a PIDE fazia fichas à mão, saber em que circunstâncias um cidadão pode ser vigiado, observado e escutado não é um problema de segurança, mas de democracia.

Artigo publicado no jornal “I” em 16 de agosto de 2017

Sobre o/a autor(a)

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
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