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Assédio no trabalho: a mudança necessária contra o isolamento

O que pode fazer um trabalhador vítima de assédio, designadamente após a publicação do novo regime jurídico? Que passos foram dados para garantir uma maior proteção dos trabalhadores em caso de assédio?

A legislação laboral portuguesa tardou a consagrar, de forma expressa, o assédio no trabalho, o que só veio a verificar-se no Código de 2003, mas a verdade é que esta previsão não foi integralmente inovadora. Na verdade, o assédio no local de trabalho já merecia anteriormente a tutela jurídica por força da aplicação de preceitos constitucionais como o princípio da igualdade, o direito à integridade pessoal, direito à inviolabilidade do domicílio e da correspondência, à segurança no emprego e o direito ao trabalho e do próprio código civil.

A lei 7/2009 de 12 de junho, e bem, alargou o âmbito de aplicação do conceito de assédio, que passou a abranger o assédio não discriminatório. Ficou, ainda assim, por estabelecer, de forma expressa, a sua proibição, problema que se foi resolvendo à luz da ratio da norma que consagra o assédio, previsto no art. 29.º do Código do Trabalho. A tipificação do conceito de assédio no código de 2003 surgiu na sequência da transposição de diretivas comunitárias e inserira o assédio laboral no capítulo da igualdade e não discriminação, ancorando-o no assédio discriminatório. A lei de 2009 continuou a arrumá-lo na mesma gaveta. A maioria da jurisprudência assenta em situações de assédio discriminatório até pelas dificuldades da prova do assédio que não tem por base práticas discriminatórias. E nesta mais recente alteração de regime, e ao arrepio do projeto apresentado pelo grupo parlamentar do Bloco de Esquerda, persiste a necessidade de alteração da inserção sistemática do assédio não discriminatório que deveria estar contemplado no capítulo dos direitos de personalidade. Mas já lá iremos.

O assédio combate-se pela sua criminalização?

Muito se tem apregoado a necessidade de criminalização do assédio no local de trabalho como se daqui adviesse uma espécie de solução mágica para as dificuldades, mais que identificadas, da prova destas práticas atentatórias da dignidade da pessoa humana.

Ora, o assédio moral no local de trabalho já é crime! Na verdade, o assédio moral em contexto laboral pode subsumir-se à aplicação do n.º 1 do artigo 154.º-A do Código Penal, aditado pela lei n.º 83/2015, de 05 de Agosto, que tipifica o crime de “Perseguição”, o qual, nos termos gerais, pode integrar condutas que enformam a definição de “assédio moral” contemplada no Código do Trabalho.

A tipificação de um novo crime de assédio moral no código do trabalho não traria nada de novo, nem qualquer vantagem. Ainda que, o que por mero exercício teórico se admite, se estabelecesse um novo tipo legal de crime de assédio no trabalho que deixasse de depender de queixa, passando a ser um crime público, fazendo-se uma equiparação ao crime de violência doméstica, sabe-se lá com critério de ponderação do seu desvalor, a verdade é que a pretensão última do direito do trabalho não é, como no caso da violência doméstica, a da rutura, de afastamento do agressor da vítima. Na verdade, trata-se, claro, de terminar com a situação de assédio, mas também de garantir, em condições de normalidade, a manutenção da relação laboral. A tutela penal deve ser sempre uma última ratio e não um mecanismo para chegar a um resultado conciliatório cuja expressão máxima, no caso do direito do trabalho, é a reintegração do trabalhador em caso de ilicitude do despedimento. O busílis do direito do trabalho é a tutela da parte mais fraca na relação laboral, o trabalhador, e criar condições para manter o posto de trabalho, garantindo que seja cumprido o fim último desta relação: a entrega da força de trabalho a troco de retribuição.

É certo que a criminalização a que aludimos, prevista no crime de perseguição, é uma criminalização de carácter genérico, que integra todos os comportamentos suscetíveis de se subsumirem à previsão normativa em análise, mas para quê prever um tipo específico de crime que já cabe nela? Não precisamos de redundâncias, precisamos de soluções para problemas e, sobretudo, de tutelar os direitos de quem trabalha.

O assédio sexual, que também pode integrar o assédio no trabalho mereceria, porventura, um diferente enquadramento, concedendo-se que, quanto a este, pudesse fazer sentido uma diferente moldura legal. Ainda assim, é certo que o assédio sexual pode também integrar o assédio moral enquanto conjunto concatenado de atos cujo efeito seja humilhar ou afetar a dignidade do trabalhador.

Voltando ao direito do trabalho….

Em que esfera devemos tutelar o assédio moral? Sempre na esfera laboral. É sobretudo aí que temos que proteger os trabalhadores e dignificar a relação laboral.

Feito o balanço da aplicação do regime jurídico do assédio a que conclusões chegamos?

Os números de denúncias de assédio afastam-se da dimensão deste flagelo. O assédio surge, não raras vezes, por via da utilização perversa do poder de direção da entidade empregadora: alterações de horário e das férias marcadas, inibindo a conciliação das férias entre cônjuges ou equiparados e a conciliação da vida pessoal e profissional, a mudança das condições de trabalho, mascarando-se, assim, práticas isoladamente lícitas, utilizadas como forma de vexar e perturbar o trabalhador.

O regime jurídico do assédio revelou-se incapaz de dar resposta às grandes debilidades levantadas por um conceito difícil de delimitar e de responder a um fenómeno poliédrico, que combina práticas lícitas e ilícitas, mas cujo efeito no trabalhador é dramático, por contender diretamente com a sua dignidade.

Sendo o assédio no trabalho, moral ou sexual, e frise-se, não só no local de trabalho, como em qualquer contexto que contenda com essa relação de trabalho (basta pensar no assédio através dos meios eletrónicos, como telemóvel ou email), é um fenómeno que decorre de uma relação de poder, marcadamente desigual. É nessa relação de poder, que carateriza a relação laboral, que tem ser encontrada a resposta. Numa relação de poder, insiste-se, em que entidade empregadora tem o poder de direção e maxime o poder de despedir que é a sua manifestação mais gravosa. Ainda que estejamos a falar de assédio horizontal, entre trabalhadores, é na entidade empregadora que tem que recair a responsabilidade, por ser a que tem ao seu ao dispor o poder de impedir e prevenir o assédio, sem prejuízo da responsabilidade disciplinar do trabalhador e do exercício, eventualmente legítimo, do poder disciplinar sempre que o seu impulso e intenção sejam completamente alheios à entidade empregadora.

Que passos ficaram por dar?

Sabíamos que alterar o regime jurídico do assédio no trabalho obrigaria a desatar vários nós. E nem todos foram desatados. O cerne da alteração deste regime jurídico passaria por uma repartição do ónus da prova em que caberia ao trabalhador indicar, de forma circunstanciada, os factos que consubstanciam assédio e ao empregador demonstrar que eles não se verificaram. Na realidade, e em obediência às regras gerais do direito civil, cabe a quem invoca o direito a prova dos factos constitutivos desse direito sejam eles positivos ou negativos, sendo certo que a dificuldade da não verificação de factos negativos será sempre coligida por critérios de adequação e proporcionalidade. A inversão do ónus da prova foi contemplada para situações de recusa de colaboração de uma das partes, caducidade de uma ação ou situações em que uma das partes beneficie de presunções legais, presunções essas que estão definidas quer no direito civil, quer no código do trabalho (presunção de laboralidade, consagrada no artigo 12.º do código do trabalho ou a presunção de ilicitude do despedimento em caso de desrespeito por determinadas formalidades legais). As presunções visam também dar equilíbrio a uma relação desequilibrada. Ficou este passo por dar e que o BE sempre considerou fundamental.

O assédio não discriminatório, e sobretudo esse, que não tem por base a comparação com outros colegas de trabalho, continua assim com uma prova fatalmente amputada pela dificuldade de resultante das regras de repartição do ónus da prova em vigor.

Que passos foram dados para garantir uma maior proteção dos trabalhadores em caso de assédio?

  • Clarificou-se o conceito de assédio que passou a integrar quer as práticas que decorram no local de trabalho, quer as que ocorram fora do local de trabalho, através de meios eletrónicos, mas que contendam com essa mesma relação;
  • Consagrou-se, de forma expressa, a proibição do assédio não discriminatório;
  • Determinou-se a proibição de processos disciplinares desencadeadas por práticas de assédio, movidos contra o trabalhador ou as testemunhas, com exceção dos casos em que estes atuem com dolo, até trânsito em julgado de sentença,
  • Presumiu-se como abusivas sanções, designadamente o despedimento, aplicada no prazo de um ano após uma denúncia de assédio;

A proteção das testemunhas e do denunciante, associada à presunção de que é abusiva a sanção disciplinar ou o despedimento na sequência de denúncias por assédio é um passo fundamental para tentar impedir os constrangimentos próprios do contexto laboral para a produção de prova testemunhal ou a denúncia de práticas de assédio no trabalho. Estas normas têm que ser conciliadas com o prazo legal de um ano após a infração para que o empregador possa exercer o poder disciplinar, pelo que são normas que blindam intenções persecutórias por parte da entidade empregadora.

  • Consagrou-se que a reparação das doenças profissionais (“burn out”, depressão), que caberá ao governo regulamentar, resultantes da prática de assédio passa a ser da responsabilidade da entidade empregadora. Numa primeira fase, a segurança social assume os custos, mas tem direito de regresso sobre as entidades empregadoras, o que significa que deixa compensar às empresas submeter os trabalhadores a situações de tortura psicológica como forma de forçar o trabalhador a, por sua iniciativa, fazer cessar o contrato ou a fazer uma revogação (por “mútuo acordo”, perdendo, por exemplo, os direitos inerentes em caso de despedimento sem justa causa)
  • Determinou-se que a sanção de publicidade, na qual se inclui a publicação da lista das empresas condenadas por assédio, passa a ser obrigatória. Até aqui a publicidade era apenas uma sanção acessória que podia, casuisticamente, ser afastada.

O que pode fazer um trabalhador vítima de assédio, designadamente após a publicação do novo regime jurídico?

  1. Reunir toda a prova documental de que disponha (emails, cartas, ordens por escrito da entidade empregadora que possam constituir assédio, ainda que estejam no âmbito do exercício do poder de direção como mudanças de horário, das condições de trabalho ou alteração das férias);

  2. Fazer denúncia à ACT, presencialmente ou através do site http://www.act.gov.pt/(pt-PT)/Itens/QueixasDenuncias/Paginas/default.aspx, podendo esta denúncia ser anónima;
  3. Comunicar a situação às estruturas representativas dos trabalhadores (sindicatos, comissões de trabalhadores), bem como associações de precários, e pedir aconselhamento;
  4. Auxiliar o inspetor em qualquer ação inspetiva realizada no local de trabalho, quer diretamente, quer através das estruturas representativas dos trabalhadores;
  5. Contactar colegas de trabalho, que sejam da sua inteira confiança para testemunhar, caso tenham presenciado situações de assédio, privilegiando, por estarem menos fragilizados, os trabalhadores com maior antiguidade e efetivos (com contratos por tempo indeterminado) e informá-los de que não poderão ser objeto de retaliação através de sanção disciplinar ou despedimento, nos termos descritos acima;
  6. Solicitar relatórios médicos, quer através da medicina no trabalho, quer através do médico de família ou especialista, designadamente psiquiatra, que comprovem o seu quadro clínico e que permitam comprovar o nexo causal entre a situação de assédio de que é vítima e a doença profissional de que padeça (nos termos que vierem a ser regulamentados)
  7. Em caso de condenação da empresa verificar e exigir a publicação da sanção no site da ACT

Os trabalhadores vítimas de assédio no trabalho não podem ficar sozinhos. É nesse isolamento que reside a arma mais forte, a da humilhação, do vexame, da dignidade ferida...

Que estas alterações sejam aliadas contra esse silêncio que enfraquece.

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