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Salve-se o homem

Passos Coelho, por enorme infelicidade, teve só um comportamento de abutre.

Fui sabendo da desgraça à distância de um oceano inteiro. A catástrofe de Pedrógão Grande rebentara de mãos dadas com a primeira hora da minha primeira manhã em Havana. Escrevi a crónica da passada semana no hall do hotel, sobre o fogo, com o coração na manhã que despontava e embriagado pelo gelo de um ar condicionado frigo-guerrilha de Caribe.

Lá fora chovia copiosamente, como ainda não havia chovido este ano, asseguravam-me. Saí da cidade, procurei o mar e desejei desligar da síndrome-galo-de-Barcelos-tic-tac, bomba-relógio, quando senti que alguns procuraram encontrar culpados mal acabassem de contar as vítimas. Passaram alguns dias e Cuba, afinal, não conseguiu a minha vitória final para sempre. Regresso a Portugal e a primeira notícia-manchete é a de Passos Coelho e os seus suicídios-fantasma. Não sobre o seu suicídio político, já requentado: era mesmo sobre os seus particulares suicídios anónimos por confirmar. Fazemos todos um esforço enorme por esquecer Passos mas ele não permite.

O líder da Oposição resvalou para um sítio sem pé, amarrou-se nas palavras, afundou a pés juntos e nem no momento em que, pedindo desculpa, procurava respirar na linha de água percebeu a gravidade do que fizera. Não só do que disse, mas sobretudo do que pretendia dizer e ligar. Politicamente, revela um homem em desespero e em fuga para a frente, à solta porque se sente sozinho. Não alinho no assassinato de carácter, não acredito que seja um homem obstinado a ganhar votos à custa da ignomínia. Passos Coelho, por enorme infelicidade, teve só um comportamento de abutre.

Passos pediu desculpa por um equívoco, mas a gravidade não reside no engano. A gravidade sente-se na intenção. É totalmente absurdo que alguém, no rescaldo duma tragédia desta dimensão, noticie um suicídio para no segundo seguinte ter necessidade de o confirmar, olhando para trás a procurar companhia: está confirmado, não está? Mas totalmente inaceitável, o que não está ao alcance da desculpa, é que alguém fale em suicídio naquelas circunstâncias, como um portador-aprendiz de notícias fresquinhas mas tristes. Passos parece um homem que necessita desesperadamente de apoio político para evitar pedir apoio psicológico. E apesar de ninguém no partido querer avançar antes das Autárquicas, alguém o deveria intimar a desistir do país quando o partido já desistiu dele há muito, poupando-nos - a nós e a mais um dos seus casacos - à torpe visão da sua bandeirinha do tempo da PàF. É um apelo. Passos perdidos. Salve-se o homem agora que morreu o político.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 28 de junho de 2017

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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