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Elogio da amizade na política

Há, na política, companheirismo, encontro e amizade que são o contrário da baboseira do “eles são mas é todos amigos”, seguida da inevitável “eles querem todos é tacho”.

Para o João Semedo

Há quem conceptualize a política fundando-a na dicotomia amigo-inimigo. A política faz-se de escolhas e dos confrontos por elas suscitados, a política faz-se de gestão tática e estratégica das relações de forças, a política é sempre tensão, mesmo quando há cooperação. Na política assim vista, a amizade é um logro, uma fraqueza, um acaso.

E, no entanto, há companheirismo, há encontro, há amizade na política. Não, não falo do companheirismo tático dos interesses pessoais ocasionalmente convergentes, não falo do encontro das agendas de ambição individuais ou de grupo, não falo da amizade feita de “carreiras políticas” ascensionais partilhadas desde cedo. Falo do companheirismo, do encontro, da amizade feitos de partilha de ideais e de projetos e, mais que tudo, de partilha de caminhos de entrega gratuita, de desprendimento militante, de aprendizagens mútuas do que é o compromisso com a justiça e com a sabedoria. Há, na política, companheirismo, encontro e amizade que são o contrário da baboseira do “eles são mas é todos amigos”, seguida da inevitável “eles querem todos é tacho”.

É esse sentido do companheirismo fundo, desprendido, gratuito, que torna o coletivo fecundo. Se for só campo de disputa ou instância impositiva, o coletivo é o campo dos fiéis mas não o campo dos leais. Se não for habitado por referências fortes para a vida de cada um, o coletivo é um poder mas não é uma rede solidária de deveres e de direitos.

Eu construí amizades fortes assim, amizades para uma vida inteira, no compromisso político, na luta comum, na solidariedade dura das hesitações e dos entusiasmos ou na experimentação difícil da provisoriedade certa tanto das vitórias como das derrotas das propostas e dos passos dados para as afirmar. A política também é essa tessitura de cumplicidades intensas entre gente que se quer bem. E essas amizades são pilares, dos mais fortes, daquilo que fui sendo e sou.

Não, não precisamos de ser todos amiguinhos e fofinhos. Nem na política nem onde quer que seja. A firmeza é certamente uma qualidade tão importante como a afabilidade. Mas não foi de qualidades gerais que quis aqui dar testemunho. Foi só mesmo da grandeza de vidas com quem as nossas se misturam. E a política dá a essa mistura uma densidade que poucas mais coisas dão.

Desculpem a pieguice. Mas foi da vida que conta que vos quis falar.

Artigo publicado no diário “As Beiras” a 10 de junho de 2017

Sobre o/a autor(a)

Professor Universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda
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