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Terminou o paradigma Thatcher?

Theresa May e o Partido Conservador vivem na sombra de Margaret Thatcher. As sondagens demonstram uma encruzilhada com raízes históricas. 
Theresa May em campanha eleitoral, por Facundo Arrizabalga, POOL/Lusa.
Theresa May em campanha eleitoral, por Facundo Arrizabalga, POOL/Lusa.

Sendo mulher, conservadora e primeira-ministra, seria talvez inevitável a comparação incessante entre Theresa May e Margaret Thatcher. O jornalismo britânico deu certamente um bom número de opções interpretativas desde que May foi eleita líder dos Conservadores e, primeira-ministra em julho de 2016. Desde a versão da reencarnação invertida no New Statesman - “Theresa May transforma-se na Margaret Thatcher de 1979 aos olhos do público”; passando pela versão The Telegraph que olha para Thatcher como um trauma a ultrapassar - “Theresa May redefine Conservadorismo e os Tories deixam Thatcher para trás”; à versão militante e entusiasta do Express - “Theresa May é mais popular do que Margaret Thatcher no pico da sua carreira”; e até a versão da beatificação de May por parte do Finantial Times: “O que Theresa May aprendeu com Margaret Thatcher”. 

Todos estas peças (e esta é uma pequena amostra) apresentam diferentes variações num esforço comum de construção de Theresa May mas, inadvertidamente, definem o horizonte da política britânica em Margaret Thatcher. No entanto, situação social e contexto político são dramaticamente diferentes, e o Tempo não foi a principal variável.

Como já vimos neste dossier, Margaret Thatcher chega ao poder em 1979 acompanhando uma inflexão de paradigma económico e social provocado em 1976 pelo próprio Labour, sob pressão do FMI. O desgaste social das políticas de austeridade naqueles três anos foi profundo, levando o movimento sindical - significativamente mais forte do que é hoje - a criar uma sucessão de greves contra o “seu” próprio governo em 78-79. 

Ao contrário de Edward Heath, Thatcher é perspicaz em alimentar os antagonismos de classe em seu proveito, antagonismos que alimenta e aprofunda de forma implacável. A sociedade britânica sob Thatcher é estruturalmente polarizada, com o desemprego a aumentar de forma galopante (uma tendência que começou ainda com o governo trabalhista)

Para Tony Judt, “Thatcherismo significava várias coisas: redução de impostos; o mercado livre; empreendedorismo; privatização de indústria e serviços; valores vitorianos; patriotismo; o indivíduo. Algumas destas coisas - as políticas económicas - eram uma extensão de propostas que já faziam parte das discussões em grupos tanto trabalhistas como conservadores. Outras, a começar pelos temas ‘morais’, eram mais populares em regiões profundamente conservadores do que no eleitorado em geral. Mas vieram na sequência de uma reação contra o libertinismo dos anos sessenta, e apelava a muitos dos admiradores de Thatcher nas classses operárias e classe média-baixa: homens e mulheres que nunca se sentiram à vontade na intelligentsia progressista que dominava o espaço público naqueles tempos”, escreve em Postwar. E sintetiza, “mas o que o Thatcherismo realmente significava acima de tudo o resto era a ideia de um governo forte.” 

É importante talvez relembrar que, nas eleições de 1979, Margaret Thatcher não ganha nem soma votos de forma significativa para os conservadores relativamente às eleições anteriores. Antes, são os trabalhistas que perdem a confiança maioritária após os protestos 78-79 deixarem uma imagem de incapacidade de governar. Como Tony Judt o descreve: “Na sua campanha para as eleições de 1979, os conservadores fizeram campanha não apenas com a necessidade de rigor económico e uma política monetária séria, mas também o desejo da nação em encontrar líderes fortes e confiantes”. 

Se os trabalhistas lançaram o ataque ao estado social britânico, Margaret Thatcher lançaria o país numa alteração profunda da sociedade. “Os cidadãos foram transformados em acionistas (…) o espaço público transformou-se num mercado”. Margaret Thatcher destruiu primeiro os sindicatos, com uma série de leis que limitavam as liberdades de greve, e a partir sobretudo de 1983, lançou uma década de privatizações onde “tudo, ou quase tudo” foi privatizado. Primeiro toda a rede de pequenas e médias empresas com capital público, a cooperativas, e depois os monopólios nas comunicações, energia, transporte aéreo. Uma das privatizações com efeitos mais duradouros foi a venda de todo o património imobiliário afeto a habitação social. 

A escala dos programas de privatização de Thatcher foi de tal ordem que, entre 1984 e 1991, “um terço de todos os bens privatizados no mundo foram vendidos apenas no Reino Unido”. Quando John Major substitui Margaret Thatcher, já pouco restava. E quando privatiza os caminhos de ferro, “a sua principal razão de ser foi a necessidade de John Major mostrar que era capaz de privatizar qualquer coisa” (p.544). Margaret Thatcher transformou o país, mas reduziu os conservadores a um grupo sem rumo programático. 

Há, no entanto, algo que nem Thatcher nem Major se atrevem a destruir. Por toda mudança de paradigma que Thatcher provoca, com o fim do ‘coletivismo’ e a emergência do ‘indivíduo’, ninguém aceitava a privatização da saúde. Para isso, foi necessário a emergência de Tony Blair e do New Labour. A vitória de Thatcher foi tão profunda que, mesmo quando o Partido Conservador perde toda a sua força e os trabalhistas sob a liderança de Blair regressam ao poder em 1997, não defendem uma única reversão das políticas de Thatcher mas atacam antes os impostos altos, a corrupção e as ineficiências do estado.

Se Margaret Thatcher redefiniu as diferenças políticas, objetivamente neutralizando a diferenciação política, Jeremy Corbyn reintroduziu uma clarificação política que não existe no Reino Unido desde pelo menos 1974, e o público parece estar a aderir.  

Este é o problema central que Theresa May não esperava e que explica a queda sustentada nas sondagens desde que Jeremy Corbyn apresentou o seu manifesto eleitoral. Pela primeira vez desde os anos 70, o eleitorado tem uma escolha que não se reduz aos binómios thatcheristas e à procura de "ineficiências" dos serviços públicos. 

(...)

Neste dossier:

Cartazes da campanha eleitoral de 1945 no Reino Unido.

Eleições no Reino Unido: terminou o paradigma Thatcher?

Desde 1945 que não se registava uma variação das sondagens tão expressiva e, neste momento, uma vitória dos trabalhistas é uma possibilidade real.

"O Labour não resulta", cartaz de campanha de Margaret Thatcher em 1979.

Do Novo ao Velho Labour, e um pouco de Thatcher pelo meio

Margaret Thatcher afirmou que a sua principal vitória teria sido o "New Labour" de Tony Blair. Mas será? Expomos neste artigo uma perspetiva histórica onde Thatcher não teria existido sem as políticas de austeridade aplicadas pelo próprio Labour. 

Manifesto eleitoral trabalhista de 1945.

O suicídio socialista de Corbyn

Jeremy Corbyn foi, desde a sua eleição para a liderança do partido trabalhista, classificado de um radical socialista, incapaz de vencer eleições. No entanto, após a apresentação do manifesto eleitoral, Corbyn parece estar a dar uma lição histórica com repercussões vastas para a esquerda europeia.

Foto de Jose Luis Fuentes, flickr.

Quatro parlamentos e um Reino, o sistema político britânico

Explicamos neste artigo a estrutura institucional do Reino Unido e a forma como os diferentes partidos conjugam a representação entre os diferentes parlamentos. 

Theresa May em campanha eleitoral, por Facundo Arrizabalga, POOL/Lusa.

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Foto de freestocks.org/Flickr.

Brexit, Economia, Saúde e Educação: o que propõem os partidos

Analisamos aqui, de forma sintética e temática, as principais propostas dos partidos com representação parlamentar. 

Margaret Thatcher em campanha para o referendo de 1975.

O valor da Europa

Após a vitória do Brexit, criou-se um mito de um eleitorado arrependido. Os números mostram que não só a saida da União Europeia é aceite como desejada por uma maioria expressiva e inter-partidária.