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E o cinema, pá?
Para além do tema e o modo amoroso do intérprete (até pelo contraste com as fórmulas batidas que se transformaram na receita daquele concurso), a vitória de Salvador Sobral na Eurovisão ficou marcada também pelas respostas genuínas e desconcertantes às perguntas formatadas de tantos jornalistas e pelo seu saudável desprendimento em relação aos rituais e aos clichés (no conteúdo, na forma, na língua) que fazem parte da “indústria de plástico” que tomou conta do festival. Nos dias que se seguiram, parecia tornar-se evidente que tentarmos imitar essa indústria e as suas receitas era ridículo e uma estratégia condenada ao fracasso.
Infelizmente, essa lição está longe de se ter generalizado. No caso do cinema, por exemplo, a semana em que se celebrou a música de Sobral foi a mesma em que se assistiu a mais alguns episódios no triste e lamentável caminho que tem sido o das políticas públicas nesta área.
Vale a pena lembrar que poucos campos da criação em Portugal têm tido nos últimos anos tanto reconhecimento internacional quanto o cinema. Sim, o cinema português não só é apreciado como tem sido amplamente premiado por todo o mundo. Que cinema? Justamente o que representa um olhar próprio, o que não ambiciona ser a imitação caseira de uma espécie de “hollywood à portuguesa” (para isso existe Hollywood, de onde aliás saem por vezes coisas extraordinárias), o que foge das estafadas fórmulas comerciais, o que não procura repetir o que já foi feito, mas contribuir com um modo particular e original de ver e de imaginar o real. Este cinema, que só existe se a diversidade da produção for garantida por políticas públicas, está sob ameaça. Por várias razões.
A primeira é o esvaziamento do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA). Como dizia João Salaviza, em reação à substituição da sua direção esta semana, “não precisamos de gente que se limite a assinar papéis e a carimbar interesses das grandes operadoras e a castrar as novas vozes do cinema português. Queremos que o ICA assuma quais são as suas políticas e as suas prioridades, em debate público." É isto que não tem acontecido – e não se vislumbra que a nova direção seja diferente, porque se desconhece qual a sua visão, os seus objetivos estratégicos ou propostas para reconstruir a legitimidade do organismo.
A segunda razão – relacionada com a primeira – é a do financiamento. O montante dos apoios em 2017 sofreu uma redução de cerca de 20%, que o Secretário de Estado e o Ministro tentaram ocultar confundindo os números e pondo na conta de 2017, por exemplo, os apoios plurianuais para os festivais até 2019. Em algumas áreas, como no apoio às primeiras obras de longa-metragem de ficção, os cortes significam nada mais nada menos que menos 4 filmes a serem produzidos. Como se garante a diversidade nestas condições?
Finalmente, o que tem estado em curso é a substituição de uma política que foi garantindo a diversidade da produção e a viabilidade do cinema de autor (esse que nos permitiu, por exemplo, arrebatar 3 ursos de ouro em Berlim nos últimos anos, facto inédito e pouco celebrado por cá) pela submissão ao lóbi das operadoras, nomeadamente a Vodafone, a Meo ou a NOS, por via da transferência do que devia competir ao ICA para uma chamada “Secção Especializada do Cinema e Audiovisual”, onde aqueles interesses se organizam e articulam para decidir os júris e os filmes a financiar.
Esta transferência de competências tem sido justificada com duas mistificações. A primeira é que a tal Secção seria o órgão mais representativo do cinema e do audiovisual, o que é risível tendo em conta que metade dos seus membros se recusaram a participar nela. A segunda é que, pagando os operadores uma taxa consignada ao financiamento do cinema, eles devem decidir que cinema se produz em Portugal. Ora, o contributo dos operadores é inferior a 30% do orçamento anual global, mas acima de tudo a existência de uma taxa (tal como os impostos) é uma obrigação perante o Estado, não um ato de mecenato privado. Dizer-se que um cidadão que ganha muito dinheiro deve decidir mais sobre a política de saúde e de educação do que um que ganha pouco, porque aquele paga mais impostos, é uma ofensa à democracia. Numa democracia, cada um contribui de acordo com os seus rendimentos e obrigações e a decisão cabe a todos com o mesmo poder, competindo ao Estado a salvaguarda do bem comum e não a defesa de interesses particulares. É exatamente isto que não está a acontecer.
De facto, quando o Estado financia o cinema não está a dar dinheiro a realizadores malucos que fazem coisas que só interessam a eles, como alguns operadores insinuam. Está a garantir que o património vivo de imagens e de sons continua a ter condições de existência. Está, por via desses apoios, a financiar o direito dos espectadores a acederem a obras que, sem esse apoio, não existiriam. Está a garantir aos cidadãos o direito à fruição cultural.
O que está a acontecer no cinema é muito grave. Se não se interromper este desvario, bloquear-se-á um dos campos mais vigorosos e originais da nossa produção cultural. Poderemos continuar a ter “fogo-de-artifício”, é certo, e “filmes descartáveis”. Mas, parafraseando Salvador Sobral na noite da Eurovisão, há uma diferença entre isso e a música – como há uma diferença entre isso e o cinema.
Artigo publicado em expresso.sapo.pt a 19 de maio de 2017
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