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Conservadorismo e cigarros electrónicos

A propósito do reacender dos fascismos na Europa, espantamo-nos frequentemente com a “falta de memória” dos povos. E nem nos apercebemos que, com frequência, agimos nós próprios, no dia-a-dia, com a mesma “falta de memória” para resolver os problemas mais quotidianos.

Visionário e inovador, Eduíno Lopes começou a dar metadona a utilizadores de heroína nos seus consultórios mas também nas prisões como estratégia de redução de riscos. Durante 15 anos foi o único a fazê-lo

No início dos anos 80, um médico psiquiatra trazia para o Porto a terapêutica de substituição opiácea com metadona. Visionário e inovador, Eduíno Lopes começou a dar metadona a utilizadores de heroína nos seus consultórios mas também nas prisões como estratégia de redução de riscos. Durante 15 anos foi o único a fazê-lo. Durante 15 anos foi insultado, diminuído e criticado por todos os restantes “especialistas” na área que acreditavam e defendiam que a abstinência da heroína era a única saída para este problema. As autoridades em saúde pública portuguesas recusaram-se, durante esse tempo a aceitar esta estratégia. Hoje em dia temos 18.500 utilizadores de metadona. Ninguém questiona o sucesso desta estratégia. Mesmo os críticos de Eduíno Lopes de então são hoje os mais acérrimos defensores da metadona.

 

Em Portugal quase 2 milhões de pessoas fumam. Em 2013, 11% das mortes registadas estão relacionadas com o tabaco. Existe uma expressão utilizada em saúde pública que resume o principal problema do tabaco: “as pessoas fumam pela nicotina mas morrem pelo alcatrão”. É a partir deste axioma que surgem produtos de substituição do tabaco como os adesivos ou as pastilhas elásticas de nicotina. E na mesma lógica, os cigarros eletrónicos ou aquecidos. Existem já vários estudos que apontam para uma redução do risco na ordem dos 95% em relação aos cigarros alternativos (eletrónicos ou aquecidos). As autoridades de Saúde Pública Britânicas já assumiram que eles podem ser muito importantes, enquadrados numa estratégia de redução de riscos, para os fumadores que não tiveram sucesso com a abstinência tabágica (aqui). No entanto, a nossa Direção-Geral de Saúde continua a defender a equivalência destes produtos aos cigarros tradicionais, argumentando que o melhor mesmo, é a abstinência. Tal e qual como a abstinência da heroína. Ou mesmo como a abstinência de sexo para prevenir o VIH.

Sempre que algo de novo, potencialmente benéfico surge, esbarramos nesta parede conservadora e sem memória que, toldada pelo medo, se recusa a olhar para os problemas com racionalidade e prefere encarar a sociedade como um conjunto de marionetas

Sempre que algo de novo, potencialmente benéfico surge, esbarramos nesta parede conservadora e sem memória que, toldada pelo medo, se recusa a olhar para os problemas com racionalidade e prefere encarar a sociedade como um conjunto de marionetas que fazem ou farão tudo aquilo que as suas autoridades de saúde decidirem no conforto dos seus gabinetes. Não querem divulgar os cigarros alternativos como estratégia de redução de riscos porque isso pode incitar os mais jovens a começarem a fumar. Como se a metadona incentivasse os jovens a injetarem heroína. Ou o preservativo os incentivasse a terem mais relações sexuais. Ou o aborto legal incentivasse jovens raparigas a abortar. Não querem os cigarros eletrónicos como redução de risco, porque se desconhecem os efeitos a longo prazo. Como se a pílula anticoncetiva quando surgiu tivesse “longo prazo”. Ou os novos medicamentos para combater o cancro tivessem “longo prazo”. Ou os atuais antirretrovirais para combater o VIH existam há mais de 10, 15 anos.

 

Defender estratégias de redução de riscos não significa impor nada a ninguém. Significa informar. Informar e possibilitar uma escolha. Existirão sempre os bem-sucedidos que deixarão de fumar de um dia para o outro. Para os restantes, é altura de lhes fornecer informação correta para que possam decidir o que querem fazer com a sua dependência. E mesmo que, com toda a informação disponível, continuem a fumar, pois paciência – é mesmo isto que significa viver em liberdade e em respeito pelas diferenças de cada um de nós.

 

Seria se calhar esta a altura em que “recuperávamos a memória” do Eduíno Lopes e nos deixávamos de querer promover abstinências várias, quando já sabemos claramente, através dessa memória, que elas não funcionam para toda/os.

Sobre o/a autor(a)

Médico neurologista, ativista pela legalização da cannabis e da morte assistida
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