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Trabalho por turnos (*)

A concepção típica de trabalho por turnos envolve a sucessão de equipas de trabalho de modo a estender o período de laboração, incluindo o seu prolongamento até às 24 horas diárias. Por Isabel Soares da Silva.
Isabel Soares da Silva. Foto do site da Universidade do Minho
Isabel Soares da Silva. Foto do site da Universidade do Minho

Refira-se, no entanto, que o conceito de trabalho por turnos tem sido também aplicado na literatura a outros horários de trabalho, como é o caso de horário irregulares, horários nocturnos permanentes, horários compreendidos entre a tarde e a noite ou a qualquer horário de trabalho que se afaste do horário de trabalho considerado normal (para uma consulta mais detalhada sobre diferentes perspectivas acerca do conceito ver, por exemplo, Silva, 2008).

O modo como os sistemas de turnos se encontram organizados para obter a extensão diária do horário de trabalho pode variar grandemente (Gracia, Peiró & Ramos, 2002; Silva, 2008; Thierry & Jansen, 1998; Totterdell, 2005), como por exemplo, nos horários de início e de término dos turnos, no número e na alocação temporal dos dias de folga ou no grau de regularidade dos ciclos de trabalho. Com base na literatura anteriormente referida, apresenta-se de seguida algumas classificações frequentemente adoptadas na caracterização dos sistemas de turnos.

Os turnos (ou se quisermos, as equipas de trabalho) podem trabalhar num sistema permanente ou fixo (i.e., cada equipa trabalha sempre no mesmo horário, por exemplo, das 14h às 22h ou das 22h às 06h) ou num sistema rotativo (i.e., os/as trabalhadores/as alternam periodicamente entre diferentes turnos; por exemplo, alternam a cada dois dias entre o turno da manhã, da tarde e da noite).

No caso dos sistemas de turnos rotativos, estes podem também ser caracterizados do ponto de vista da velocidade e do sentido de rotação. A velocidade de rotação diz respeito ao tempo (“dias”) que um/a trabalhador/a permanece num dado turno antes de alternar para o turno seguinte, podendo-se falar, globalmente, em sistemas de rotação rápida (ex., alternância entre os diferentes turnos a cada dois dias) ou de rotação lenta (ex., alternância entre os diferentes turnos a cada duas semanas). Quanto ao sentido de rotação, como a própria terminologia deixa antever, refere-se ao sentido em que a alternância entre os turnos ocorre, podendo este fazer-se no sentido dos ponteiros do relógio (i.e., turno da manhã - turno da tarde - turno da noite) ou em direcção contrária (i.e., turno da noite - turno da tarde - turno da manhã). Enquanto que no primeiro caso se classifica o sentido de rotação em atraso de fase, no segundo, este é classificado como avanço de fase.

A classificação dos sistemas de turnos pode derivar também da combinação dos dias da semana trabalhados e da existência ou não de trabalho nocturno. Deste modo, fala-se em sistemas descontínuos (interrupção do trabalho no período nocturno e ao fim de semana; sistema abreviado frequentemente como “2X8”, significando duas equipas de trabalho e oito horas diárias de trabalho); semi-contínuos (interrupção do trabalho apenas ao fim de semana; sistema abreviado frequentemente como “3X8”: três equipas em sucessão que cobrem o período das 24 horas durante os dias úteis da semana); e contínuos (todos os dias da semana são trabalhados, 24 horas por dia, 365 dias por ano). A última estrutura organizativa é a mais exigente quer do ponto de vista da sua gestão (ex., são necessárias pelo menos três equipas em laboração e uma em repouso) quer do ponto de vista de adaptação para os trabalhadores dado que envolve, inevitavelmente, trabalho nocturno e trabalho ao fim de semana. De um modo geral, como referem Thierry e Jansen (1998), quanto mais “desviante” for a configuração horária do padrão dito normal, mais provável é a manifestação de queixas.

Relação conflituosa entre ritmos biológicos e sincronizadores ambientais

O trabalho por turnos tem sido associado a diversas consequências negativas quer para os/as trabalhadores/as quer para as organizações. De um modo global, pode dizer-se que no primeiro caso, tais consequências derivam, por um lado, da situação conflituosa entre os ritmos biológicos e os sincronizadores ambientais (sobretudo quando o trabalho ocorre à noite e o sono durante o dia) e, por outro, da situação conflituosa entre o período de trabalho e a organização temporal da sociedade (sobretudo quando o período de trabalho coincide com o final de dia e o fim de semana) (Smith, Folkard & Fuller, 2003). Como se depreende da descrição anterior, os efeitos nefastos encontram-se sobretudo associados aqueles sistemas que envolvem a realização de trabalho nocturno (em regime alternado ou fixo) e/ou que envolvem a realização de trabalho em períodos socialmente valorizados, donde se destaca o período de fim de semana. Do ponto de vista organizacional, são também esses sistemas que têm sido associados a maiores dificuldades, nomeadamente, em termos da segurança e do desempenho. Entre os factores que concorrem para explicar essas dificuldades, encontra-se o facto de tais sistemas exigirem que o/a trabalhador/a inverta o seu ciclo sono-vigília (i.e., que durma durante o dia) o que pode resultar em défices de sono ao longo do ciclo do trabalho, os quais, poderão interferir com os níveis de desempenho e de segurança. Por outro lado, o/a trabalhador/a no sentido de maximizar o seu tempo de livre com a família e/ou vida familiar pode comprometer a duração do período de sono/repouso entre turnos nocturnos.

Perturbações na saúde e na vida familiar e social

Na Tabela 1 apresenta-se uma síntese das possíveis perturbações associadas ao trabalho por turnos, efectuada a partir de revisões da literatura sobre esta matéria (Silva, 2008; Smith et al., 2003; Totterdell, 2005). Ainda sobre este assunto, convém sublinhar que enquanto algumas perturbações se podem reflectir a curto prazo (ex., dificuldades de sono, alterações dos estados de humor), outras, a manifestarem-se, exigem tipicamente uma exposição prolongada a este regime de trabalho (ex., desenvolvimento de perturbações no sistema cardiovascular). Sublinhe-se também que as diversas dificuldades podem interagir. Por exemplo, as perturbações no sono podem ter repercussões do ponto de vista laboral (ex., segurança), noutras facetas da saúde e/ou da vida familiar e social; por sua vez, as dificuldades resultantes da interferência do horário de trabalho na vida familiar e/ou social podem desencadear e/ou exacerbar as dificuldades experienciadas ao nível do sono.


Tabela 1 – Síntese das possíveis perturbações associadas ao trabalho por turnos, especialmente quando envolve trabalho nocturno (saúde e contexto organizacional) e/ou períodos temporais muito valorizados socialmente (vida familiar e social)

Saúde

Vida familiar e social

Contexto organizacional

Sono (o sono diurno tende a ser mais reduzido, fragmentado e menos recuperador)

Queixas subjectivas de redução do bem estar, sintomatologia depressiva e ansiosa, fadiga

Queixas (ex., alterações no apetite) e risco acrescido de desenvolvimento de doenças no aparelho gastrointestinal

Risco acrescido de perturbações no sistema cardiovascular

Risco acrescido de perturbações na saúde reprodutiva nas mulheres (ex., perturbações no ciclo menstrual)

Provavelmente risco acrescido de desenvolvimento de doença oncológica (cancro da mama)

Vida familiar

- conflito nos papéis parentais

- conflito nos papéis conjugais

- maior esforço na gestão/conciliação dos horários (escolares, laborais, etc) dos membros da família


 

Vida social

- maior esforço para participar em actividades colectivamente estruturadas

- provavelmente maior envolvimento em actividades de natureza solitária nos tempos livres e de lazer

- pode emergir um sentimento de “isolamento” resultante das dificuldades anteriores

 

O desempenho tende a ser menor, especialmente em tarefas que exigem trabalho físico

Risco acrescido de erros/acidentes

Resultados contraditórios quanto ao absentismo

 


O facto de se estar exposto a um regime de trabalho por turnos, não significa que se venha a desenvolver os efeitos anteriormente descritos. Além disso, entre as pessoas que os experienciam pode haver graus muito distintos de tolerância, sendo que tal tolerância pode ser influenciada por um conjunto alargado de factores de natureza diversa. Por exemplo, a revisão de Costa (2003) agregou-os em cinco categorias: i) características individuais (ex., idade, estrutura circadiana, estratégias de sono, personalidade e comportamentos); ii) condições familiares e habitacionais (ex., estado civil, número e idade dos filhos, atitudes da família face ao horário de trabalho); iii) organização do tempo de trabalho (ex., características do sistema de turnos; grau de participação na organização do horário de trabalho); iv) condições laborais (ex., medidas compensatórias, suporte das chefias, carga de trabalho, disponibilização de programas de aconselhamento); e, v) condições sociais (ex., suporte social, rede de transportes, tradição de trabalho por turnos na comunidade). As intervenções propostas para minimizar ou evitar os potenciais problemas induzidos pelo trabalho por turnos encontram-se intimamente associadas aos determinantes de tolerância identificados (Silva, 2008; Smith et al., 2003). Por exemplo, ao nível do desenho dos sistemas de turnos, têm sido disponibilizadas um leque alargado de recomendações ergonómicas abrangendo várias características dos mesmos (ex., duração mínima dos intervalos entre turnos), enquanto que ao nível das práticas que as organizações podem adoptar, tem sido enfatizado o grau de participação permitido à força de trabalho na concepção e na gestão de aspectos relacionados com o tempo de trabalho.

Retomando a questão dos efeitos, refira-se também que têm sido associados ao trabalho por turnos certos benefícios. Com efeito, além da majoração remuneratória, têm sido referidos aspectos como maior facilidade no acesso a certos serviços cujo funcionamento é somente diurno, maior tempo livre no período diurno ou maior conciliação com a vida familiar (em parte conseguida através do maior tempo livre durante o dia proporcionado por algumas configurações horárias integradas neste tipo de horário de trabalho) (Silva, 2008).

Ainda que a implementação desta modalidade horária possa dever-se, em muitos casos, a motivações económicas, há certos sectores de actividade que por imperativos de natureza técnica têm necessidade de introduzir a laboração contínua (ex., indústria química), enquanto noutros (especialmente serviços), são os imperativos de ordem social que têm impelido e continuarão a impelir a adopção desta configuração horária. Com efeito, é esperada que a prestação de serviços na segurança pública, na área da saúde ou de bens públicos seja assegurada ininterruptamente ao longo de 24 horas por dia, 365 dias por ano.

(*) Fonte : Adaptado de Silva, I. S. (2012). Trabalho por turnos. In A. L. Neves &

R. F. Costa (Coords.), Gestão de Recursos Humanos de A a Z (pp. 619-622). Lisboa: Editora RH.


Isabel Soares da Silva é psicóloga e docente na Escola de Psicologia da Universidade do Minho

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Referências bibliográficas:

Costa, G. (2003). Factors influencing health of workers and tolerance to shift work. Theory Issues in Ergonomic Science, 4(3-4), 263-288.

Gracia, F., Peiró, J. M., & Ramos, J. (2002). Aspectos temporales del trabajo. In J. M. Peiró & F. Prieto (Eds.), Tratado de Psicología del trabajo: La actividad laboral en su contexto (Vol. I) (pp. 125-168). Madrid: Editorial Síntesis, S.A..

Silva, I. S. (2008). Adaptação ao trabalho por turnos. Dissertação de Doutoramento em Psicologia do Trabalho e das Organizações. Braga, Universidade do Minho.

Smith, C. S., Folkard, S., & Fuller, J.A. (2003). Shiftwork and working hours. In J. C. Quick & L. E. Tetrick (Eds.), Handbook of occupational health psychology (pp. 163-183) (2nd ed.).Washington DC: American Psychological Association.

Thierry, H., & Jansen, B. (1998). Work time and behaviour at work. In P. J. D. Drenth, H. Thierry & C. J. de Wolff (Eds.), Handbook of work and organizational psychology (Vol. 2: Work Psychology) (2nd ed., pp. 89-119). East Sussex: Psychology Press.

Totterdell, P. (2005). Work schedules. In J. Barling, E. K. Kelloway & M. R. Frone (Eds.), Handbook of work stress (pp. 35-62). Thousand Oaks: Sage Publications.

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