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Os 60 anos do Tratado de Roma, ou como um sonho se traduziu na erosão da Democracia

Até hoje, e durante 60 anos contados do Tratado de Roma, a União Europeia mais não fez do que levar a cabo a erosão da democracia em todo o seu espaço. Este movimento tem que ser invertido.

I - Assinalaram-se os 60 anos da assinatura do Tratado de Roma, que marca o arranque formal do processo de integração europeia que viria a originar o que hoje conhecemos como União Europeia.

A efeméride foi assinalada com uma reunião do Conselho Europeu, simbolicamente realizada em Roma, cuja declaração final, fruto de intensas negociações diplomáticas, resultou numa declaração sem uma mensagem clara num momento de grandes incertezas na Europa, lembrando o episódio do hino tocado pela orquestra enquanto o Titanic afundava.

Em boa medida, a crise que hoje se vive no processo de construção europeia advêm precisamente de um projecto de integração económica pouco perceptível - no seu desenvolvimento e nas tomadas de decisão que o determinaram - pelo comum dos cidadãos. A razão prende-se fundamentalmente com a crise do conceito de “Estado Westefaliano” originada por um sistema de relações internacionais cada vez mais centrado numa nebulosa “governança” que se desenvolveu à margem e contra o conceito de soberania popular.

Os processos de integração económica, em especial, têm posto boa parte das competências decisórias quanto aos aspectos mais relevantes da organização económica e social à margem dos órgãos políticos dotados de legitimidade democrática directa.

II - Os meios de recepção do Direito Internacional Público pelas constituições da generalidade dos Estados determinam que o mesmo vigore e prevaleça sobre a legislação ordinária de cada Estado, quando não mesmo que adquira um estatuto supra-constitucional.

É certo que as normas de Direito Internacional Público são aprovadas pelos órgãos dos Estados que a eles aderem, o que resulta numa auto-vinculação dos mesmos. No entanto, acabam por vincular esses mesmos órgãos ao seu cumprimento e observância, limitando a sua acção, a menos que os Estados se desvinculem das convenções ou tratados internacionais que os originaram. Sucede que nem sempre tais convenções permitem aos Estados que os mesmos se desvinculem livremente, pelo que ficam aprisionados dessas decisões, sublinhando-se que uma saída unilateral da União Europeia apenas se tornou possível após o Tratado de Lisboa.

As formas e processos de vinculação dos Estados colocam ainda outros problemas relacionados com a redução do papel dos parlamentos eleitos no exercício das suas competências: seja pela maioria exigível para a ratificação dos tratados, seja pela reserva de iniciativa para a ratificação ou denúncia dos tratados.

Assim, e no caso português (semelhante, aliás, a muitos outros casos), não é exigida uma maioria qualificada para a ratificação de tratados internacionais, pelo que uma maioria qualificada que exerça as competências legislativas da Assembleia da República tem de se conformar com as normas de um tratado internacional que, no limite, possam ter sido aprovadas por uma maioria inferior na Assembleia da República.

Também no caso português, a iniciativa para a ratificação e denúncia de tratados é reservada ao Governo, pelo que quando a Assembleia da República procede a tal ratificação, fica vinculada ao conteúdo do tratado, sem que possa livremente e sem intervenção do Governo denunciar esses tratados.

III – A União Europeia, nos termos dos tratados que a instituem, envolve ainda a vigência nos Estados-Membros que a compõem de normas jurídicas e decisões dos órgãos da União Europeia. Assim, a par do Direito Europeu Originário (o que resulta directamente dos tratados celebrados entre os Estados-Membros), temos ainda o Direito Europeu Derivado (que resulta da acção das suas instituições, a coberto dos tratados).

Para além das competências legislativas que os tratados atribuem às instituições comunitárias, há ainda que contar com as decisões dos tribunais da União Europeia, que assim se tornam também eficazes e obrigatórias nos Estados-Membros e ainda os tratados internacionais que, em matéria da competência exclusiva da União sejam celebrados pelos seus órgãos, vigorando directamente na ordem jurídica dos seus Estados-Membros (como é o caso do CETA ou de outros tratados internacionais em matéria comercial).

Os tribunais europeus, de forma pretoriana, foram construindo direito, aprofundando muitas vezes as atribuições da União Europeia e firmando o princípio do primado do Direito Europeu relativamente ao Direito dos Estados-Membros, sem que os órgãos constitucionais possam actuar de forma eficaz na defesa da soberania popular.

A dimensão e importância do processo de integração europeia e dos seus efeitos levaram diversos Estados-Membros a preverem a possibilidade de referendarem a ratificação dos tratados que instituem a União Europeia.

Em Portugal, apesar de tal possibilidade estar hoje expressamente prevista (com especial propriedade depois da Revisão Constitucional de 2005), nunca se levou a cabo qualquer referendo sobre a matéria, o que mais silenciou o debate sobre a integração europeia (e isto apesar de sucessivas revisões constitucionais terem já acolhido o processo de integração europeia e aberto o caminho à recepção automática do Direito da União Europeia com a consequente diminuição da sua soberania).

IV – Os tratados que instituíram e aprofundaram o que hoje chamamos União Europeia, tal como outros tratados que instituem mecanismos de integração económica, comportam consequências para a Democracia podem ser demasiado funestas.

Os processos de integração económica exigem a harmonização de um conjunto de normas que garantam o equilíbrio e sucesso dessa integração económica. Esta harmonização de regimes jurídicos é, em regra, realizada à margem do debate e opinião públicos, correndo o risco de, quando entregue a tecnocratas, ser imperceptível para as populações que hão-de reger-se por normas que resultem dessa harmonização.

No âmbito da União Europeia (e antes da CEE, da CECA e da EURÁTOMO) a harmonização de normas resulta das opções inscritas no respectivo tratado instituidor, sendo executada inicialmente a um nível intergovernamental e a partir de 1979 com a participação do Parlamento Europeu, directamente eleito pelas populações.

Apesar da legitimidade resultante da eleição directa do Parlamento Europeu, e de este ter visto o seu leque de competências a aumentar paulatinamente com as diversas versões dos Tratados, ao pondo de ter a partir do Tratado de Lisboa competências de participação e pronúncia quanto à revisão dos tratados, esta legitimidade é irrelevante na medida em que:

a) Continua a não existir um Povo e uma opinião pública europeus, traduzidos numa discussão de políticas europeias com a visibilidade e crítica a que estão sujeitas as políticas nacionais;

b) O Parlamento Europeu está destituído de poder de iniciativa legislativa, continuando a mesma entregue a instituições inter-governamentais (O Conselho Europeu e o Conselho) ou a instituições com forte pendor inter-governamental, como é o caso da Comissão Europeia, cuja designação, apesar da intervenção do Parlamento Europeu, se mantém sobretudo na esfera inter-governamental.

c) O Parlamento Europeu não tem qualquer capacidade decisória, ou pelo menos de pronúncia vinculativa, quanto à alteração dos Tratados.

Por outro lado, a complexidade técnica de muita da legislação europeia e o uso pela burocracia europeia encarregue da sua elaboração não contribuí para atenuar este défice de debate democrático e de exercício de crítica em relação às opções políticas que lhe são subjacentes.

O facto de as grandes discussões serem tidas na esfera de instituições inter-governamentais dificulta ainda mais o acesso à informação, pelo pouco escrutínio que se pode fazer desses debates fruto da reserva associada aos mesmos.

V – A falta de democracia no processo de construção europeia não é surpreendente, atentos os objectivos que presidiram à integração europeia e à sua evolução. Afinal, o que os tratados visavam era a liberdade de circulação de mercadorias, serviços e capitais, eliminando os entraves burocráticos e alfandegários.

Toda a evolução do processo de integração europeia foi meramente instrumental deste objectivo de liberalização. Fosse na coordenação de políticas económicas e monetárias, com o seu apogeu na criação do Euro e assim prevenir práticas de desvalorização competitiva da moeda que prejudicariam a concorrência, fosse na criação do espaço Schengen e na liberdade de circulação de pessoas e de estabelecimento, que foi meramente instrumental da abertura comercial das fronteiras.

O próprio desenho do Euro e os critérios de convergência nominalistas que foram impostos aos Estados-Membros são a expressão de uma política neo-liberal que progressivamente se foi aprofundando e inscrevendo nos tratados, determinando uma redução das escolhas dos decisores dos Estados-Membros, subordinando-se a vontade popular e a legitimidade democrática periodicamente renovada a tratados estáticos e dirigistas relativamente às políticas dos Estados-Membros.

Aqui chegado, eu diria que os tratados que instituíram a União Europeia inverteram o postulado do materialismo histórico: é que em larga medida, foi a super-estrutura, na dimensão do edifício jurídico da União Europeia, que condicionou e alterou a infra-estrutura europeia e de cada um dos Estados-Membros.

Com efeito, e apesar de a maioria dos Estados-Membros afirmarem a sua fé e empenho no Estado Social, foram forçados a arredar-se deste consenso social, muitas vezes inscrito nas respectivas constituições nacionais, por imposição do Direito da União Europeia, que longe do consenso social que constrói maiorias e constituições em cada Estado-Membro, impôs a alteração desse paradigma.

VI – O resultado da falta de debate abrangente sobre a integração europeia, da falta de um Povo e de uma opinião pública que escrutinem as decisões num plano europeu e a falta de democracia, seja na vertente deliberativa, seja na vertente das competências da escassa manifestação de democracia representativa na União Europeia é a crise permanente que a União Europeia vive nos últimos anos.

Da decisão de saída da União Europeia assumida pelo Reino Unido, à dúvida generalizada sobre a bondade do processo de integração europeia e sobre o Euro, esta Europa está a colher os frutos da falta de democracia e da imposição de princípios de organização política económica e social por via de tratados incompreensíveis e que imolam a vontade popular expressa por órgãos eleitos e periodicamente renovados (ao contrário da legitimidade dos tratados, que é estática e auto-imune aos princípios democráticos, criando uma espécie de geringonça que se alimenta a si própria no quadro de um postulado liberal pétreo e imutável)

Nesta altura, poderão legitimamente apontar-me uma envergonhada posição federalista. Terão razão, se o fizerem por entenderem que pretendo nestas linhas defender a maior da legitimidade democrática para o processo de decisão na União Europeia. No entanto, no momento actual, não me parece que tal seja possível. É que tal como não se fazem omeletas sem ovos, da mesma forma não se constrói uma unidade política sem uma homogeneidade mínima entre os cidadãos que a hão-de integrar.

No entanto, a União Europeia chegou a um ponto onde se impõe uma alteração profunda do estado de coisas. Como qualquer organização atípica, a União Europeia sofre das contradições e perigos inerentes a essa condição. E a solução nunca será simples ou isenta de riscos. O que não poderá ser é uma solução isenta de debate abrangente e sindicável por todos os cidadãos, em primeiro lugar dentro de cada Estado-Membro e depois a uma escala europeia.

VII - Passados 60 anos, um projecto que alegadamente defendia a paz, cooperação e solidariedade entre os Estados-Membros gerou um monstro que os Estados-Membros não são capazes de controlar, bastando-se para a sua legitimação com a sua mera existência.

Importa hoje impor a democracia à União Europeia, procurando construir um consenso social, que, repito, deve ser encontrado aprioristicamente dentro de cada Estado-Membro e ampliado, se possível ou desejável, na União Europeia num modelo diverso e que se encerre na legitimidade democrática periodicamente renovável, seja enquanto organização internacional de Estados Soberanos, seja enquanto algo mais do que isso. O que a União Europeia não pode ser, sob pena de desaparecer, é uma nebulosa de “governança” sem que seja perceptível e sindicável o alcance das suas políticas.

Até hoje, e durante 60 anos contados do Tratado de Roma, a União Europeia mais não fez do que levar a cabo a erosão da democracia em todo o seu espaço. Este movimento tem que ser invertido.

Sobre o/a autor(a)

Advogado, ex-vereador a deputado municipal em S. Pedro do Sul, mandatário da candidatura e candidato do Bloco de Esquerda à Assembleia Municipal de Lisboa nas autárquicas 2017. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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