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Com o Zeca Afonso aprendi a estar no palco e na música de modo diferente
Aquela capa negra, aquele olhar aparentemente ausente mas circunspecto, chegou da praia ao anoitecer calçando alpercatas.
Era preciso arranjar sapatos pretos e talvez umas meias, calças pretas e não sei que mais, pois aproximava-se a hora do «Acto de Variedades»!
Durante a tarde foram discretamente distribuídos uns pequenos prospectos (assim se chamavam) anunciando baladas pelo Dr. José Afonso na esplanada da Junta de Turismo.
Verão de 1963, na praia de Quarteira, ou praia de Loulé. Era eu o vocalista e baterista do conjunto «Planície» que, durante a época balnear na dita esplanada, «abrilhantava» (assim se dizia) os bailes que animavam as noites da praia excepto à segunda-feira, mas com matinée ao domingo.
Por ali passaram muitos nomes sonantes da «canção portuguesa» na época: Luís Piçarra, Simone de Oliveira, Madalena Iglesias, entre muitos outros, apresentados em palco com todos os formalismos por um locutor também ele artisticamente composto.
Na noite da capa negra tudo foi diferente, discretamente anunciado aparece o Dr. José Afonso e seus acompanhantes (Rui Pato e outros...) não consigo lembrar-me. O ambiente era de alguma tensão, tenho bem presente mas isso não perturbou a minha atenção, fixada naquela informal presença de fresca e bela voz que me fascinou e prendeu até ao fim do concerto, digo, «acto de variedades». Era o Zeca!
Mal pensava eu o que iria passar-se alguns anos depois...
Conheci-o pessoalmente e comecei a acompanhá-lo após o 25 de Abril, embora já antes, clandestinamente, me tivessem passado pelas mãos alguns dos seus discos.
Ele ia com muita frequência ao Alentejo; numa das suas passagens pelo Redondo, apadrinhou a formação do nosso grupo de Cantadores. Inesquecível! Uma multidão cantando com ele «Grândola Vila Morena» e outras modas alentejanas.
No Verão quente de 75, fervia a agitação cultural e o Zeca, sempre que solicitado a cantar no Alentejo e precisava, lá íamos nós (o Vitorino, eu, o Carlos nosso irmão e o Manel do Asilo nosso amigo) acompanhá-lo!
Guitarras, adufes, pandeiros, sol-e-dó, trancanholas, vozes... era a festa! Mas atenção, não faltava o discurso político, sempre assertivo, esclarecedor, pedagógico, mas agitador.
Tive o privilégio de acompanhá-lo durante alguns anos e com ele aprendi a estar no palco e na música de modo diferente: o palco como espaço de partilha, não só entre músicos mas com o público; máximo rigor na prestação musical, inovação constante rejeitando «importações» alienantes preservando a nossa identidade, sempre valorizando a palavra. Era (é) forçoso que acontecesse algo mais que uma mera sessão de entretenimento musical.
O seu legado é único, inigualável e precioso!
Uma parte importante da nossa história contemporânea está contida (cantada) na sua obra, que na integra devia fazer parte do «Plano Nacional de Leitura e Iniciação à Música». Exagero?
É ler, ouvir e reflectir!
*Janita Salomé - Cantor e compositor português.
Testemunho enviado ao Esquerda.net a 18 de fevereiro de 2017.
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