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A Gisberta podia ser eu

A memória de Gisberta foi sempre uma constante, assim como o dever de lutar para que não seja esquecida.

Eu tinha apenas 15 anos quando a Gisberta foi assassinada. Ligava pouco a jornais e noticiários, mas a cobertura deste caso foi tão grande, que era impossível ignorá-lo. Demorei tempo a digeri-lo (alguma vez o fiz?) mas o que senti foi, sobretudo, medo.

Os assassinos de Gisberta eram um grupo de jovens adolescentes, com mais ou menos a minha idade. Podiam ser os meus colegas de turma, que me insultavam, chamavam nomes, cuspiam em cima, atiravam pedras. A Gisberta podia ser eu, se não naqueles dias, um dia mais tarde. Nunca ficaria a salvo.

No início de 2006, frequentava há poucos meses as consultas no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, que me dariam acesso aos tratamentos “mágicos” (acreditava eu, aos meus 15 anos) que me fariam ter um aspecto físico com o qual me identificasse. Teria de esperar mais dois anos e meio para começar uma terapia hormonal, que os meus pais me impediram de iniciar antes da maioridade. Eu não era mulher, acreditavam eles – e esperavam que os médicos o confirmassem, e me espantassem essas ideias da cabeça. Nunca puderam espantar.

Durante muitos anos da minha vida, não havia local onde eu me pudesse sentir segura. Nem em casa com a minha família, que negava a minha identidade; nem na escola, com os amigos que não tinha, os colegas e professores que não me respeitavam. Gisberta fez-me ter medo que isso nunca terminasse. Será que nunca vai terminar?

Hoje sei que a Gisberta tinha 20 anos quando imigrou para Portugal. Consigo imaginar os sonhos que trazia com ela. Com a mesma idade, eu entrei na Faculdade de Letras de Lisboa, cheia de sonhos também. Com a mesma idade, assumi responsabilidades enquanto activista: aprendi a tomar decisões que não me afectavam só a mim própria, fui obrigada a ceder demasiadas vezes.

A memória de Gisberta foi sempre uma constante, assim como o dever de lutar para que não seja esquecida. As tertúlias, os debates, os comunicados, foram as iniciativas que estiveram ao meu alcance e daqueles com quem fui trabalhando, quando estiveram. Foi sempre pouco. Foi sempre ao lado. Hoje tenho 25 anos, e tenho cada vez menos medo. Pelo menos, medo de errar.

Só quem aprende com os erros, pode avançar. Mas demasiada gente teima em não avançar. Fazer de 2016 o #AnoGisberta é, de facto, voltar a contar a História, dando destaque a quem devia ter voz e não a teve, a quem sofreu e sofre opressão de ambos os lados. Não precisamos disto. É às pessoas trans que mais dói ouvir: não precisamos disto! Não precisamos de agradecer a quem falou por nós, porque tínhamos dito muito mais se nos tivessem passado a palavra.

10 anos depois, a Ação Pela Identidade – API é uma organização única, que foi juridicamente constituída com o suor dos seus fundadores, baseando-se na interseccionalidade e onde os direitos são reivindicados na primeira pessoa. Onde o trabalho pelos direitos trans é liderado por pessoas trans. Assim como o trabalho pelos direitos intersexo é liderado por pessoas intersexo. A mim, pessoalmente, custou-me 5 anos a conseguir ter um projecto assim, do qual pudesse fazer parte. 5 anos a fazer cedências, tanto a pessoas cis que não podem saber o que é ser trans, como a pessoas trans que acham que são as pessoas cis quem mais faz por elas. Não precisamos disso. A API não é recente e não será efémera.

10 anos depois, já provámos que aqui está a resistência trans e que podemos ser trans visíveis. É por isso que, com todo o respeito que é devido, retomamos as palavras da ªt. – associação para o estudo e defesa do direito à identidade de género (2002-2007), não para sermos consensuais, mas para mostrarmos que #NãoTemosVergonha de sermos trans. Por todas as Gisbertas, e por todas as adolescentes trans que continuam com medo.


Artigo publicado em Dezanove a 21 de fevereiro de 2016

 

Sobre o/a autor(a)

Ativista feminista, dirigente do Bloco de Esquerda, co-diretora da ONG Ação Pela Identidade - API
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