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Partir pedra até morrer

Quem tem longuíssimas carreiras contributivas não pode ser obrigado a trabalhar até ao limite das suas forças e da sua vida.

Entre a realidade e a imagem que dela é produzida vai às vezes uma grande distância. A cada momento, tomamos o real pelo que os media mostram, pelo que as ciências sociais consideram digno de ser nomeado e estudado, pelo que a agenda política vai elegendo como merecedor de debate. Frequentemente, a nossa atenção é consumida por discussões fúteis. O tempo que esses episódios consomem não é de pouca importância: não pelo que revelam, mas pelo que não deixam que seja visto.

Vem isto a propósito de um encontro que tive, em Penafiel, distrito do Porto, com pessoas que são, em grande medida, invisíveis: aquelas que, nas pedreiras, arrancam do terreno enormes pedras disformes de granito e as transformam, com a força dos seus braços e com golpes que só a experiência ensina, nas pedras da calçada que pisamos todos os dias.

Quase todos os trabalhadores que conheci começaram a trabalhar quando acabaram a quarta classe. O ensino obrigatório não ia para além disso e era preciso levar dinheiro para casa. Aos 11 ou 12 anos de idade todos eles já trabalhavam na pedreira. Os horários eram longos e ainda hoje vão para além do que deviam. Férias, poucos as gozaram, mesmo quando estavam no contrato. Doenças, quase todos têm. Ao fim de 40 anos de trabalho duro, a respirar a poeira da pedra que os pulmões já não aguentam, a trabalhar com o ruído das máquinas e do transporte, com as mãos, os braços e as costas moídos pela vibração frenética dos compressores, o corpo fica desfeito. Isto, quando não há azares maiores – e eles existem. Em Portugal continua a morrer-se a trabalhar. Em 2014, foram 160 pessoas. A indústria extrativa é aquela onde o trabalho mais mata: cinco vezes mais do que a média, e a média já é uma afronta insuportável.

Aos 55 anos ou aos 56 ou aos 57, que é a idade dos trabalhadores com quem falei, estas pessoas já trabalharam demais. Com salários baixos e horários longos, com condições de trabalho onde a segurança e a saúde coletiva foram postas em segundo plano, a vida foi consumida pela pedreira, a sílica deu cabo dos pulmões, as máquinas dos músculos e o peso dos transportes deu-lhes cabo das costas. Alguns têm 46 anos de descontos para a segurança social. E, no entanto, têm de esperar mais uma década para poderem reformar-se. Mais dez anos deste trabalho, ainda. Alguém aguenta?

Em Portugal, não é só nas pedreiras que isto acontece. Há uma geração inteira que começou a trabalhar muito cedo. É a geração dos meus pais. Dentro dela, muitos e muitas foram empurrados para ganhar a vida desde crianças. A mesma sociedade que as obrigou a abdicar da infância não lhes reconhece hoje o direito a reformarem-se mais cedo. Que justiça existe nisto?

Não pretendo retomar todos os termos do debate sobre a segurança social e a sua “sustentabilidade”. Direi apenas isto: quem tem longuíssimas carreiras contributivas não pode ser obrigado a trabalhar até ao limite das suas forças e da sua vida. Não faz sentido que um trabalhador com 40 anos ou mais de descontos que queira reformar-se sofra um corte de mais de 40% no valor da sua pensão para o resto da vida (0,5% por cada mês que falta para chegar aos 66 anos e 4 meses de idade, mais o “fator de sustentabilidade”) e fique condenado a receber uma pensão abaixo do limiar de pobreza. Quem trabalha desde tão cedo tem de ser compensado.

Parece que finalmente se vai fazer justiça a estas pessoas. Em cima da mesa estão propostas do Bloco e do PCP, o Governo anunciou que ia também apresentar as suas. Não estaremos de acordo em tudo, certamente. Mas não adiemos mais. Olhemos para quem já deu tanto, para quem tanto viu ser-lhe retirado. E tomemos decisões.

Artigo publicado em expresso.sapo.pt a 17 de fevereiro de 2017

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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