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Inverno

Depois de 10 invernos a trabalhar num grande hospital, aquilo a que assisti este ano é incomparável com qualquer referência do passado.

Gostava de vos escrever um artigo sobre urgências hospitalares com números. Estatísticas. Gráficos. Comparações. Quantos utentes foram neste início de Inverno às urgências? Qual foi o tempo médio de espera? Existiram camas suficientes para todos os que precisaram de internamentos? E vagas de Cuidados Intensivos, foram suficientes? Houve atrasos de atendimento? E no tratamento? Tudo isto requer, diz o bom-senso, calma e frieza na análise dos dados objetivos que estarão para serem publicados em breve. É preciso algum distanciamento e reflexão para se identificarem os problemas, discutir hipóteses de trabalho e implementar soluções.

Pois eu hoje não tenho nenhuma destas qualidades que me permitiriam escrever um bom artigo! Nem tão pouco as estatísticas. Tenho a minha memória e muitas emoções. Se elas não servem a política, parem de ler este artigo agora. Depois de 10 invernos a trabalhar num grande hospital, aquilo a que assisti este ano é incomparável com qualquer referência do passado. Há-de existir um conceito qualquer entre o burn-out e o stress pós-traumático que se aplique.

A época da gripe chegou em força. Não chegou sem avisar porque chega todos os anos sensivelmente por esta época. Não chegou sem planeamento porque vimos os hospitais abrirem camas de retaguarda propositadamente para lhe fazer frente. Não chegou numa época desfalcada porque os hospitais proibiram as férias dos seus funcionários. Não chegou sorrateiramente porque foram ativados todos os planos de contingência no tempo certo.

E apesar disso, as urgências tornaram-se uma autêntica trincheira. As camas de internamento rapidamente se esgotaram e os doentes começaram a acumular-se nos corredores dos serviços de urgência. Seguiram-se as camas de cuidados intensivos, tendo-se chegado ao cúmulo de existir “lista de espera” para se ser internado numa destas unidades. Os tempos de espera ultrapassaram o ridículo: houve alturas em que para se ser triado eram precisas 3 horas e para se ser visto por um médico podia chegar-se às 24. Com tudo isto desequilibrou-se o hospital. Muitas cirurgias programadas foram desmarcadas e pessoas com doenças médicas foram internadas em enfermarias cirúrgicas. As salas de reanimação passaram a estar ocupadas de forma quase permanente por doentes críticos, sem vagas nas unidades de intensivos, deixando os doentes mais graves que entravam na urgência sem um sítio adequado para serem observados e tratados. Doentes com doenças respiratórias que precisavam de um ventilador eram colocados em macas, durante várias horas, ligados a um ventilador portátil que já devia ter seguido para a sucata há várias décadas. Dias passaram em que os hospitais mais críticos fecharam as portas da urgência às ambulâncias do INEM. E outros tantos dias em que doentes em situação crítica tiveram que ser transportados para outros hospitais por ausência de vaga. No meio disto tudo, profissionais completamente exaustos, frustrados e incapazes de dar resposta adequada a uma situação que eles não criaram. E claro, doentes e familiares revoltados e desesperados!

Se a gripe estava anunciada, se havia planos de contingência em curso, se ninguém tirou férias e se se abriram tantas camas de internamento previamente, porque aconteceu isto este ano? Não é difícil de perceber que o principal problema do SNS não é nem conjuntural nem sazonal. É estrutural. Anos consecutivos de subfinanciamento desestruturam qualquer serviço ou instituição e este delapidar constante do SNS não se “cura” com medidas de contingência. Nem tão pouco com orçamentos de Estado com acréscimos de 400 milhões de euros. O orçamento de Estado para a saúde deste ano não foi diferente dos anteriores: apesar de contemplar mais dinheiro do que se previa no ano anterior, ele não chega para fazer face à despesa crescente nem resolve de forma nenhuma o “défice crónico” do SNS. Aumentar o orçamento anual de um serviço não significa investimento se esse dinheiro não servir para renovar estruturas deficitárias, contratar os profissionais em falta (que é diferente de contratar “mais” profissionais) e construir serviços adaptáveis às mudanças que se operam hoje na oferta de cuidados. Podem bem colocar mais 400 milhões no orçamento de 2018 que o próximo inverno será tão ou mais agreste que o que está agora a decorrer.

Curiosamente, a cobertura da comunicação social este ano foi das mais tímidas que já conheci e os debates e discussões políticas ficaram aquém do que observei noutros anos. Foi quase como... se estivesse tudo a correr bem! Mas não está. Já sei que todo este artigo são só “impressões” e nenhum número. E eu sou só mais um médico sobrecarregado e mal pago. Mas estas são as impressões de quem faz todos os dias o SNS acontecer: profissionais e doentes. E quando a política e a comunicação social se distanciam de quem vive a rotina de um país, passam a servir interesses que não são o da maioria das pessoas.

Sobre o/a autor(a)

Médico neurologista, ativista pela legalização da cannabis e da morte assistida
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