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O “direito a desligar”
A questão não é nova, mas a publicação, no dia 1 de janeiro deste ano, da lei francesa que prevê o "direito à desconexão" ou o "direito a desligar" abriu o debate também no nosso país. Como responder à armadilha dos mails e dos smartphones utilizados para prolongar informalmente o horário de trabalho? O que fazer perante o crescimento do esgotamento e do stress resultante da "disponibilidade total" cada vez mais exigida pelas entidades empregadoras? Como adaptar a lei à nova realidade destes dispositivos, que invadem e põem em causa coisas tão básicas como o direito ao descanso ou o respeito pelo período de férias? Vamos mesmo aceitar este “novo esclavagismo” em que trabalhamos sem limite?
As respostas são ainda, em grande medida, hesitantes. Mas apontam possibilidades. Há exemplos de empresas, como a Volkswagen na Alemanha, que tomaram a decisão de pura e simplesmente desligar os seus servidores entre o fim da tarde e a manhã. Noutros casos, legislou-se no sentido de aceitar que os patrões e os chefes podem contactar os trabalhadores, mas definiu-se os casos excecionais em que isso pode acontecer. Em França, criou-se este novo “direito à desconexão”, inscrito no Código Laboral e gerou-se um intenso debate, que extravasou fronteiras. Contudo, na versão final da lei remeteu-se a regulação desse direito para o acordo entre os “parceiros”, definindo-se que, não havendo acordo, cabe à entidade empregadora estabelecer em que condições ele é exercido. Caso desrespeitem essas normas, o que acontece às empresas? A lei francesa não prevê nada.
Em Portugal, o debate ainda vai no início. A primeira discussão é saber se deve ou não haver alterações à lei. Há patrões que acham que estamos muito bem assim: “Os suicídios podem ser atribuídos ao trabalho como há pessoas que se suicidam porque tiveram um desgosto amoroso. E não é por isso que nós vamos proibir o amor”, diz Miguel Pina Martins, da Science4You, uma empresa conhecida pela precariedade extrema que impõe aos trabalhadores. O Governo, por seu lado, entende que bastaria um apelo às entidades empregadoras e aos sindicatos para que, querendo, debatam o assunto. Só que não pôr nada na lei é um convite a que seja o empregador a ditar a sua lei. Excluir uma intervenção legislativa é, pura e simplesmente, uma demissão política.
Por várias razões. A lei do trabalho serve precisamente para disciplinar uma relação jurídica estruturalmente desigual e feita de conflitos de interesse. É por isso que, tipicamente, as normas laborais inscritas na lei devem ter uma natureza imperativa, só podendo ser afastadas quando se estabeleçam condições mais favoráveis para o trabalhador. Quando a lei não define mínimos, as empresas redigem o contrato e o trabalhador, na prática, limita-se a assiná-lo, por mais despótico que ele seja.
Não está em causa que haja espaço para a negociação e para adequar as regras às particularidades de cada setor de atividade, mediante contratação coletiva, porque isso já está previsto, e bem, no Código de Trabalho. Não está em causa, também, que haja profissões e trabalhadores que tenham isenção de horário. Isso também já está previsto na lei, associando-se à isenção de horário compensações em termos de descanso e de remuneração. O que não podemos é ignorar a realidade em que vivemos, feita de horários desregulados, horas extras muito acima do que seria aceitável, muitas delas não remuneradas, precarização, concorrência entre trabalhadores, abusos e transgressão da lei pelas empresas, níveis alarmantes de exaustão e sofrimento no trabalho.
Neste contexto, dizer que o “direito a desligar” é uma matéria que deve ser regulada pelas partes é na prática certificar a liberdade de apenas uma dessas partes - a que tem mais poder e o tem exercido como até aqui. Se esta fosse a resposta, seria igual a não fazer nada. Intervir sobre isto, também na lei e prevendo sanções, não é apenas uma questão laboral, é um imperativo de cidadania.
Artigo publicado em 6 de janeiro de 2017 em expresso.sapo.pt
Comments
Finalmente alguém levanta
Finalmente alguém levanta este problema, este abuso absurdo de escravidão, é uma realidade que nunca tinha visto antes, ao fim de 35 anos de trabalho, nunca fui tantas vezes incomodado nas minhas merecidas férias para as interromper, para ir trabalhar única e exclusivamente em proveito do patrão. Pior ainda, são os incómodos, em pleno tempo laboral, os pedidos para fazer mais horas, também em proveito do patrão, horas, que no meu caso significa 16 horas seguidas, muitas vezes sem as folgas intermédias que são de lei, no caso de turnos, como é o meu caso, o problema não é só o incómodo, é o sono que já não existe, dorme-se quando calha e quando tiver realmente sono. Não há horas para refeições, porque, ou se dorme ou se come, enfim, o incómodo não está em ser comodista, mas sim, um transtorno para a saúde incalculável e irrecuperável. E os lucros desse incomodo? Nenhum! Porque mesmo que fosse bem remunerado, não compensa o sacrifício, mas o pior é que nem é bem remunerado, nem compensado por folgas extras, extra, só mesmo o trabalho. Mas lá está, se dizes que não! És um péssimo empregado, desprezado e até podes ficar prejudicado, esta é a realidade no trabalho. E a fiscalização? Ui, se ela existe, não se vê, e se vê, é insignificante, ou entram nas empresas com os pés secos, e de imediato saem com os pés encharcados de euros, não sei, porque nunca vi, nem ninguém vê, mas que há muitos fantasmas e muitas bruxas lá isso há, e eu acredito, mesmo sem os ver.
Sim, ficamos deslumbrados,
Sim, ficamos deslumbrados, com os "benefícios" da globalização e, por ela (ou vice-versa) da "inovação".
Da "inovação" tecnológica, da "inovação" gestionária (os tais "novos modelos de gestão") e, agora, até da "inovação social".
E, de tão deslumbrados, não saímos do paradigma do tal "crescimento" e "competitividade" pela "inovação" para (nos) perguntarmos sobre o paradigma do desenvolvimento, da coesão, da justiça social.
Não nos deveria bastar saber que, sim senhor, a globalização e a "inovação" aumentou incomensuravelmente a riqueza mundial mas que, dessa "riqueza", 63 pessoas detêm no mundo, o mesmo que 50% da população mundial, portanto, o mesmo que 3.700 milhões de pessoas?
Como são distribuídos os benefícios da globalização e da "inovação"?
E no domínio do trabalho, para onde (para quem...) vão os benefícios das tais "inovações" tecnológicas e gestionárias, para quem?
Pelos vistos, não é certamente sobretudo para os trabalhadores.
Mais, para onde vai o trabalho que (dizem) "desaparece" com as tais "inovações"?
Em regra, fica lá todo, nos locais de trabalho, para, (sobre)intensificado, inclusive teleintensificado, ser feito pelos trabalhadores que restaram, depois de grande parte deles ter sido despedido sob o argumento da ... "inovação tecnológica".
Ou seja, o tal trabalho "suprimido" com a "inovação" continua lá, não apenas no local de trabalho mas, via internet, telemóvel, smartphones, etc, na própria casa dos trabalhadores, no corpo e na mente, no âmago destes. Pelo menos até que a desestabilização da família, o esgotamento, sabe-se lá se o suicídio o deixe lá estar...
Para além disso, com certeza que urge reflexão (e acção...), e muita, sobre esta matéria, não apenas como um objecto (e objectivo) sindical mas, mais alargadamente, social (logo, política).
Até porque, por outro prisma, parafraseando o saudoso André Gorz (Métamorphoses du Travail), de tanto nos termos cristalizado no horizonte do "pleno emprego", nem nos apercebemos que é também muito o "emprego (sobre)pleno" (e, consubstanciando-o, o sobretrabalho) que nos afasta desse horizonte.
Antes de falar...
Antes de falar...
que tal... usar o exprimento de ... trabalhar -verdareiramente.
talvez em Portugal.
Numa fabrica.
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