A Regionalização não está esquecida (para alguns)

porVictor Pinto

03 de January 2017 - 13:31
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Se com meios, dimensão e conhecimento pode fazer quem está mais perto, por que raio há-de fazer quem está mais longe?…

Numa altura em que se comemora os 40 anos do poder local; efectivamente a consagração de uma parte importante da democracia conquistada na Revolução de Abril; é inevitável não se falar de um assunto que continua a ser varrido para debaixo do tapete por algumas estruturas de poder em vários quadrantes políticos - a Regionalização.

Se com meios, dimensão e conhecimento pode fazer quem está mais perto, por que raio há-de fazer quem está mais longe? Ora, o objectivo de criação das regiões administrativas está previsto na Constituição da República Portuguesa (CRP) desde a sua primeira versão. Como é sabido, PSD e CDS sempre se opuseram a este processo, bloqueando-o activamente, principalmente nas lideranças de Marcelo Rebelo de Sousa e de Paulo Portas. Essa oposição passou pelas alterações introduzidas na CRP, que obrigaram a que a instituição das regiões tenha de passar por referendo. O único sobre esta matéria, em 1998, foi envolto numa enorme cacofonia de opiniões e desinformação, principalmente em relação ao desenho geográfico de cada região. PCP, PEV e PS* bateram-se pelo SIM, que saiu vencedor em muitas áreas do Algarve, Alentejo, Setúbal e vários concelhos do distrito do Porto. Mas no final, e de acordo com os novos preceitos constitucionais, a falta de comparência da maioria dos eleitores não o tornou vinculativo, ou seja, tudo em águas de bacalhau…

Tema inacabado e mal resolvido, o processo político que visa a descentralização administrativa e a concretização de jure e de facto de autarquias de nível supramunicipal continua a padecer de uma inércia suspeita que atira para as calendas gregas a mudança necessária. Sem nunca referir a palavra, o actual Governo apresentou-se ao país, através do seu Programa, com grandes planos para resolver a questão (pág. 87). No documento lê-se que é pretensão do executivo proceder à eleição directa das Assembleias Metropolitanas de Lisboa e Porto. Mas para quando? Ainda a tempo das próximas eleições autárquicas? É que nesta legislatura só acontecem uma vez… Por agora, o desenho do poder local está como estava. O que o Governo (com apoio do PS) parece estar a fazer é seguir a cartilha Relvas e apostar na municipalização. No capítulo da organização politico-administrativa do território, se tomarmos como amostra de vontade os recuos que vimos recentemente para “Corrigir os erros da extinção de freguesias a regra e esquadro”, tememos que, pela parte deste Governo, também a descentralização para o nível regional está para o dia de S. Nunca-à-Tarde. Segundo informações vindas a lume, o Ministro-adjunto Eduardo Cabrita pretende atribuir aos municípios funções nas áreas da educação, saúde, cultura, acção social e ordenamento do território, esquecendo-se que um variadíssimo número de problemas e planificações só podem ser tratados ao nível regional, e dos riscos de aumento do caciquismo, amiguismo e clientelismo que a municipalização pode trazer. A generalidade das autarquias não tem meios técnicos, humanos e financeiros para poder gerir todas estas competências e tenderá a passá-las a terceiros, como IPSS, associações avulsas, e claro, empresas privadas. Lembremo-nos que o poder central consome cerca de 90% dos recursos financeiros do Estado, que continua a transferir menos de 10% para as autarquias. Tudo ao contrário do que acontece numa grande parte dos países mais desenvolvidos na Europa, independentemente da sua dimensão. O que se deveria estar a fazer era elevar as capacidades financeiras e competências das freguesias, reorganizar o poder das câmaras (promovendo as assembleias municipais, principalmente) e preparar condições políticas e constitucionais para a criação de Regiões Administrativas com poder efectivo, democrático e legitimado.

A Regionalização continua a ser necessária. Em primeiro lugar porque a devolução (e não delegação) do poder para instâncias regionais permite atribuir legitimidade democrática a quem gere e decide (n)esses espaços. A descentralização do poder desburocratiza, facilita e promove o escrutínio e participação activa das populações. Nada disto acontece actualmente. Alguns passos foram dados, mas muitas das funções, gestão e verbas dedicadas ao nível regional continuam a ser feitas verticalmente através das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regionais. Estas Comissões, apesar da boa vontade e (outrora) tecnicamente bem preparadas, não são mais nem menos do que extensões do poder central, dificilmente escrutináveis e até compreendidas pelas populações. Por vezes entram até em conflito com os poderes municipais e governos eleitos, o que se compreende: o desejo de uns nem sempre é a ordem de outros. As Comunidades Intermunicipais são um bom princípio, mas apenas isso. Sem poder financeiro próprio e não sendo eleitas directamente, dificilmente conseguirão ultrapassar em qualidade o que as autarquias municipais possam fazer em acordos bilaterais. Estaremos mais próximos com as Áreas Metropolitanas que o Governo promete fazer eleger? — Sim (note-se o exemplo da anunciada gestão da STCP pela AM do Porto). Porém, continuam a não ter verba, a não ser eleitas directamente, são só duas e actualmente só servem quem já está melhor servido, Lisboa e Porto. E o resto do país, é paisagem?

Em segundo, pela lógica de escala e evidente necessidade de uma melhor integração de espaços territoriais mais alargados, com base nas suas características e problemas comuns. Uma abordagem descentralizada de fenómenos que ultrapassam a fronteira concelhia permite soluções mais eficientes para um vasto conjunto de problemas, cada vez mais emergentes, e que só podem ser bem geridos num escopo regional, em cooperação com freguesias, municípios e a Administração central. Pense-se, por exemplo, nas grandes infraestruturas, portos, ferrovia, vias de comunicação, no ambiente, rios, espaços protegidos da natureza, na mobilidade, nos fundos europeus, no turismo, na economia regional e sua tipologia, etc. Será que cada município é mais eficiente se fizer o trabalho por si só? Será que tem meios, massa crítica e verbas para confrontar problemas que passam, mas que ultrapassam as fronteiras do concelho?

Por último, em prol do desenvolvimento equilibrado, da justiça e da coesão territorial no nosso país, é urgente combater o centralismo crónico e a preponderância histórica de um espaço em detrimento de outros. O fenómeno do centralismo português é mau para muita gente, inclusive para quem vive no “centro”, pois tem como consequência a exacerbação de uma panóplia de problemas causados pela concentração de milhões de pessoas à volta de um espaço relativamente pequeno. É uma braga paralisadora de uma democracia moderna, participativa, equitativa, e sobretudo inclusiva que o país merece. Um resquício de um passado conservador, elitista, provinciano e pouco amigo da mudança que o séc. XXI exige. E é forte, com laivos de corte, a roçar a megalomania e abrangendo várias cores políticas e sociais. Continuamente crescente, faz de conta que não é nada consigo, lesto na centrifugação e nunca esquecendo de alimentar e ser alimentado por uma cumplicidade de amante dos grandes meios de comunicação. Promove uma visão distorcida da realidade do país como um todo. Em modo caleidoscópico, adopta medidas de política pública pela bitola do que se passa na capital, desconhecendo ou ignorando realidades demográficas diferentes que existem fora da Grande Lisboa. Lembremo-nos, por exemplo, dos cortes transversais em serviços públicos, particularmente durante a legislatura PSD/CDS: afectaram as áreas densamente povoadas de Lisboa e Porto (e muito!), mas certamente foram mais pesados em terras que nunca tiveram UBERs, Web Summits, Street Markets e gentrificações, e que têm cada vez menos (ou nenhuns) transportes públicos, tribunais, correios, cresces, escolas, esquadras da polícia, médicos e empregos.

Será normal e inevitável ter a maior parte do território com cada vez menos gente, sem meios, mas a quem são cobrados, individualmente, os mesmos impostos e contribuições? Havendo alternativa, devemos continuar a pagar mais por nascer e viver no local “errado”? Condenados a emigrar para dentro e para fora? A Regionalização por si só não resolve as assimetrias e desigualdades territoriais que existem no país, mas parece-nos ser um passo na direcção da equidade e no avanço da democracia que orgulhosamente comemoramos. No Parlamento de hoje será difícil convencer um número suficiente de deputados para uma alteração constitucional (e mais um Presidente que se opôs a toda e qualquer tentativa de descentralização do poder). Estão confortáveis onde estão… Mas há quem não esteja. E quem está mal, nem sempre se muda, como diz o ditado. Luta por não ser obrigado a mudar-se.

Artigo publicado no blogue onaviodeespelhos.wordpress.com


* O Bloco de Esquerda não existia como tal na altura do referendo de 1998. Defende, no seu manifesto eleitoral apresentado aos cidadãos para as Eleições Legislativas de 2015, o arranque do processo de descentralização administrativa, tendo em vista a concretização efectiva do processo de Regionalização.

Victor Pinto
Sobre o/a autor(a)

Victor Pinto

Linguista. Dirigente distrital do Porto do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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