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À boleia da morte

Os próximos anos serão os primeiros em que várias gerações irão ser confrontadas com a sucessão de mortes dos seus heróis e ícones culturais. De forma massiva, regular, quase quotidiana.

Memórias simples atiram-nos para a alvorada da cultura pop nos anos 50 do século XX ou para o início das emissões televisivas regulares em Portugal quando a década de 60 espreitava à distância de três anos. Os anos 70 ao vivo e a cores, os anos 80 e os computadores. Entretanto, o pensamento em liberdade e a democratização cultural, a assimilação do outro e a globalização das indústrias criativas. Contas simples. Estamos perante as primeiras gerações de gente suficientemente envelhecida para poder assistir massivamente à morte informada das suas referências à escala global. É ainda muito cedo para perceber o reflexo que isso terá na visão futura das pessoas sobre a vida, a morte e a arte.

Acontece que agora tudo é vendável e a morte não é diferente de nada. Há quem lhe aproveite a boleia para tudo e mais alguma coisa, sendo que o lugar do morto é muito mais do que o lugar do passageiro ao lado. Há quem a assinale e quem a comemore. Nada de muito diferente do que sempre sucedeu, só que agora é tudo mais notável e notícia. A morte perdeu o pudor e vai muito para além da trágica efeméride. A morte só não mudou na falta de exigência dos números: quando morrem centenas é uma tragédia, mas só a morte individual dá direito a biografia.

Tem-se dito com propriedade que o ano de 2016 foi um horror e ainda nem acabou. Partilho. Vimos partir gente nossa e gente comum, pessoas em número e semideuses. Foram-se referências e amparos de alma, artistas que nos ajudaram a crescer. Sim, perder Bowie, Prince e Cohen é dose. Como também é duro ver partir o último "teen idol" sem fabrico inteiramente industrial. E tantos outros. Mas habituemo-nos sem cancelar a tristeza porque não haverá nada pior do que nos venderem a morte servindo-nos indiferença. Os anos seguintes serão sempre anos de obituário. E a pior morte acontecerá quando isso nos deixar de fazer mossa ou de nos convocar um murro no estômago.

A poucos dias do novo ano, somos todos intimados para dar sentença no julgamento do ano que acaba. Juntam-se os sacos das íntimas motivações e os balanços da caixa de afectos, os balanços da conta corrente e as visões particulares do Mundo. Depois é uma questão de mais ou menos amor ou humor. Adaptação. Os anos não são todos iguais mas há alguns menos iguais do que os outros. A morte não deveria ser uma oportunidade para conhecer nada. Se o perfil do ano de 2016 nos deixa com tantas mortes no activo, como seria extraordinário que isso nos convocasse a querer ouvir mais as pessoas em vida.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” em 28 de dezembro de 2016

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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