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Que horror, trabalhar menos horas?

O susto parece ter-se instalado em algumas boas famílias, pois constou que em 2017 podemos ser obrigados a trabalhar menos horas.

O susto parece ter-se instalado em algumas boas famílias, pois constou que em 2017 podemos ser obrigados a trabalhar menos horas. É algo exagerado, parece que o governo vai atalhar esses atrevimentos e manter a ordem sagrada, pese embora a umas intrigas parlamentares que se esvairão sem consequências de lamentar. Já basta a reposição dos quatro feriados e a redução das cinco horas a mais que tinham sido impostas à função pública, por aí se fica a correção aos ímpetos troikistas.

Quanto a dias de férias, nem pensar em voltar ao que era naqueles tempos sombrios em que as instituições internacionais não tinham ainda corrigido este mar de vícios e depravação que era a lei laboral em Portugal. Em França são 28 dias e noutros países 25, mas esses antros de perdição estão perdidos.

Ora, pergunto eu, será mesmo crime infecto reduzir o tempo anual de trabalho, por ajustamentos do horário semanal ou com férias um pouco mais longas (três dias, parece que é o que está a provocar este alarme social)? Deve ser, tal a preocupação que se notou ao longo destes dias, com a invocação do Carmo e da Trindade se acontecer tal recuperação do que tínhamos (e sobrevivemos nesse passado obtuso). Mas nem sempre toda a gente pensou que menos horas de trabalho seria um perigo civilizacional.

John Maynard Keynes, economista britânico, escreveu no inverno de 1928 um curto artigo sobre o que seria a vida dos netos da sua geração e como poderiam viver em 2028. Poucos meses depois começava a grande recessão de 1929 e, mesmo assim, ele decidiu publicar o seu manifesto, o que ocorreu no ano seguinte. A tese é esta: se em cem anos o nível de vida crescer oito vezes, então os nossos netos poderão trabalhar três horas por dia. Sim, leu bem, Keynes, um Lorde inglês, liberal assumido e vivido, eminência de Cambridge, artífice da gestão económica do Reino Unido durante a guerra, prometia aos netos que viriam a trabalhar quinze horas por semana. Escrevia ele que, com tal crescimento, as necessidades do “velho Adão” não exigiriam mais do que um trabalho residual e os netos poderiam dedicar-se ao lazer, à cultura e à vida, ou seja, viver melhor.

Foi alegado que Keynes não considerou que a população aumentaria e também as exigências de consumo mudariam tanto que, mesmo com os ganhos de produtividade entretanto verificados, seria ainda necessário manter um horário de trabalho intenso. Considerou, mas isso importa pouco para o caso.

É verdade que o que definimos como consumos elementares se transformou. Metade da população mundial tem um smartphone e em 2020 poderá chegar a 80%. Todos os que não são pobres, se não mesmo alguns pobres, têm hoje acesso ou desejo de acesso a alguns bens que não são os do “velho Adão”. Mas, para usar esses consumos sofisticados, também precisamos do mais sofisticado dos bens, o tempo. Ou, como dizia o senhor Ford, “ao operário de pouco serve o automóvel se fica na fábrica de madrugada até ao pôr do sol”.

É claro que o tempo sempre foi uma disputa. De facto, trabalhava-se menos horas antes do desenvolvimento do capitalismo industrial. No século XIV, o horário médio seria de nove horas por dia, com feriados que chegariam a um terço do ano: em França, além dos 52 domingos, havia 38 feriados e 90 dias de descanso, 180 no total. O mesmo em Inglaterra.

 

Com o capitalismo, passou-se a 12 a 14 horas por dia e menos feriados, no século XIX isso dava cerca de 2900 horas anuais. Mas, nos finais do século XX, o tempo estava reduzido a 1300 ou 1400 horas nos países mais desenvolvidos, como se verifica no gráfico da Organização Internacional do Trabalho (ao lado, clique para aumentar). Portanto, Keynes tem alguma razão factual, o horário tem vindo a diminuir.

Diminui ainda muito mais se considerarmos como mudou a organização do trabalho doméstico, que envolveria algumas 60 horas semanais em 1900 e passou para 14 horas em 2011, no caso dos Estados Unidos, graças aos electrodomésticos.

Claro que, apesar dessa evolução histórica, em Portugal ainda se trabalha bastante mais horas do que em Espanha, ou França, ou Reino Unido, ou Alemanha, ou Estados Unidos, ou a média da OCDE (gráfico ao lado, clique para aumentar). O patronato, o tal que grita pelo Carmo e pela Trindade quando se discute a hipótese de voltar a ter os mesmos dias de férias que antes da troika, não ignora que, com salários mais baixos, usa muito mais horas dos trabalhadores do que as economias mais parecidas com a nossa.

Poderá ainda dizer-se que, entre nós como noutros países, a cultura social cria uma espécie de “busyness”, a obsessão de estar ocupado, e que isso favorece tempos longos de trabalho formal e informal, ou de ocupação sob submissão hierárquica, novas formas de trabalho que estendem o dia do escritório para o lar. Sim, mas é também por isso mesmo que a disputa do tempo resume a escolha de como vamos viver e de como se distribui o produto do trabalho. Não é caso para alarme, é só a vida.

Artigo publicado em blogues.publico.pt a 27 de dezembro de 2016

 

 

 


Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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