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O engodo da TSU no sapatinho

O governo de António Costa escolheu o Acordo de Concertação Social, cirurgicamente apresentado em época de descontração natalícia, como a "chave de ouro" de um ano promissor.

Os 2,5% de défice registados no terceiro trimestre, o valor mais baixo de desempregados inscritos nos centros de emprego desde 2009, a promulgação em tempo recorde do Orçamento de Estado, os 700 milhões de euros destinados à reabilitação urbana, a subida para 815 mil beneficiários da tarifa social de eletricidade. De todos os acontecimentos e números da última semana, o governo de António Costa escolheu o Acordo de Concertação Social, cirurgicamente apresentado em época de descontração natalícia, como a "chave de ouro" de um ano promissor. Falar de acordo é, na verdade, um abuso, pois apenas o campo patronal anuiu em conjunto à proposta do único tema que interessava neste processo: o salário mínimo nacional (SMN). Tudo o resto foi adiado (combate à precariedade) ou levemente abordado (contratação coletiva). Deste episódio, três lições ficam para as batalhas futuras e que nos dizem muito do ciclo político que atravessamos.

O PS não vai desistir da redução da TSU como pacto de regime

O financiamento público à subida do SMN não é uma originalidade do atual governo. Passos Coelho já havia imitado a medida adotada em 2011, no último ano de governo de José Sócrates, concedendo um desconto na TSU dos patrões associado à subida do salário mínimo em 2015 (mantido pelo PS em 2016). Com o novo acordo, 2017 será o terceiro ano consecutivo em que os patrões são incentivados com uma borla na TSU dos trabalhadores pagos com o SMN, aumentando o desconto de 0,75% para 1,25%.  Esta opção significa para o PS um recuo, uma contradição e um conflito. Recuo por transferir para o campo do capital 63 milhões de euros que podiam ser aplicados na estratégia de recuperação de rendimentos visando o "incentivo ao consumo interno", uma promessa pré-eleitoral que o PS queria aplicar pela via do trabalho (redução da TSU dos trabalhadores em 4%). Contradição por premiar as empresas que subsistem à base do SMN e que, em geral, apresentam maiores níveis de abuso laboral (turismo e comércio), ficando adiado pela enésima vez o agravamento da TSU para as empresas que utilizam trabalho precário (compromisso do programa de governo). Conflito com os partidos à esquerda, que não aceitam este engodo aos acordos assinados.

À direita faltam os partidos, mas não a organização política

A desorientação de PSD e CDS neste processo teve, igualmente, a sua chave de ouro. Marco António Costa emergiu das sombras para firmar um contributo inestimável: "as IPSS não podem ficar esquecidas na redução da TSU" e a todos um bom natal. Falar para os seus e pedir tréguas é o caminho estreito por onde se movimentam os membros do anterior governo, desgarrados dos palcos de decisão política. Mas o que faltou à direita parlamentar sobrou ao Presidente e aos patrões, com Marcelo a abençoar o acordo e António Saraiva a elogiar o bom senso do governo. O governo tem ainda a agradecer ao jornal “Público” o frete de, por duas vezes, lançar sobre o Bloco a responsabilidade pelo descompasso num acordo que, no que se refere à TSU, nunca passou pelos partidos à esquerda.

Só a coesão política pode garantir vitórias plenas à esquerda

Aqui chegados, não nos enganemos. O aumento do salário mínimo para os 557 euros é uma vitória arrancada a ferros perante o regime de compressão salarial que imperou nos últimos anos. No espaço de 13 meses, os 650 mil trabalhadores que recebem o SMN passaram a contar com mais 728 euros no seu rendimento anual. A valorização do trabalho, a redução da pobreza e a consciência coletiva de que é possível enfrentar o receituário austeritário valem esta conquista e a certeza que nada de parecido seria possível com a continuação da direita no poder ou uma maioria do PS. A brecha na redução da TSU acontece como resposta a uma posição de força à esquerda imposta pelo novo ciclo político, sendo mais uma fidelidade ao projeto liberal do que uma imposição governativa. Ainda assim, avançou e representa uma fraqueza que importa perceber.

A guerra de números em torno do SMN, é preciso dizê-lo, facilitou a plataforma negocial do PS, que pôde alimentar a ilusão de um braço de ferro com o patronato sobre o valor enquanto negociava a borla da TSU. A segunda dificuldade, mais subtil, residiu na subestimação da própria Concertação Social, que em tempo de maiorias absolutas se expõe como escaparate da propaganda governamental (com a UGT como figurante de serviço), mas que em tempos de equilíbrios precários terá um papel de legitimação acrescido, que importa combater com a mobilização social consequente.

Se queremos travar as medidas anunciadas na concertação para 2018 e 2019 (cristalização da borla na TSU e aumentos faseados semestrais que na prática diminuem o nível de recuperação do SMN previsto no programa de governo), é bom que Bloco e PCP se ponham de acordo numa plataforma de defesa da subida do SMN para os 600 euros nos próximos dois anos, sem cedências na TSU, faseamentos ou direitos laborais, polarizando e mobilizando sobre o que é fundamental: o trabalho e os rendimentos.

Sobre o/a autor(a)

Sociólogo, dirigente do Bloco de Esquerda e ativista contra a precariedade.
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