Fidel, meu querido ditador

porMiguel Guedes

02 de December 2016 - 10:28
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Por mais que o queiram desenhar a duas cores, Fidel não foi nem um ditador como tantos nem um libertador como outros.

Cai o Carmo e Varadero pelo simples facto das palavras "querido" e "ditador" coexistirem num título de crónica. Qualquer manifestação de afecto ou rejeição tem um preço que está por altura da morte, suficiente para dividir opiniões e incendiar a malta dos clássicos. Tem sido um Porto-Benfica regado a Cuba Libre. Continuar a pintar Fidel Castro a duas cores é o maior serviço que podem fazer à falta de memória colectiva. A vida de Fidel é um clássico bem mais do que "vintage" que deveria estar bem longe de se apresentar ao julgamento da actualidade como se de um réu a preto e branco se tratasse.

Por mais que o queiram desenhar a duas cores, Fidel não foi nem um ditador como tantos nem um libertador como outros. A prova maior da sua ambiguidade é o modo maniqueísta como todos os que o odeiam procuram justificar porque não teve nada de bom, ao mesmo tempo que os que o idolatram tentam justificar que nada fez de errado. É difícil encontrar um querido ditador que convoque tanta necessidade de justificação nos lados opostos da barricada.

Risível é perceber como os que dançam pela morte de Castro pretendem apagar uma Cuba feita quarto de arrumos enquanto os EUA apoiavam a ditadura de casino de Fulgencio Batista. Ou esquecer o vergonhoso embargo americano, a Baía dos Porcos de Kennedy, Guantánamo pela comodidade que é torturar fora de portas, o fim da subserviência, os progressos notáveis na saúde e educação, as maiores taxas de esperança média de vida e de alfabetização de todo o continente americano. Alguém que não deseja o progresso do seu povo nunca o educa. Absurdo também é perceber como os que choram a morte de Fidel pretendem transformar a sua herança em patacos. Transformar as restrições individuais e de cidadania, a opressão das minorias e da Imprensa livre, a perseguição das diferenças ou as execuções sumárias de tantos opositores políticos em pequenos grãos de areia é subverter por completo a liberdade que assim passa de bandeira a porta-chaves. Alguém que deseja o progresso do seu povo não o asfixia quando perde a mão. Vem nos livros. É verdadeiramente notável como assistimos a tantos herdeiros e adversários em estado de negação.

A Revolução Cubana acompanhou-me na juventude e ficou por cumprir. O Mundo bipolar do tempo da Guerra Fria transformou-se numa amálgama de pólos triturados pela vertigem de um tempo triturador. A verdade não se aguenta na linha de água se, no entretanto, alguém insistir em factos de conveniência. Conta-se agora a estória de que Fidel foi uma espécie de pai. Só que tirano. Gosto do carisma, da iconografia e do cruzadex de emoções que transporta. Mas com toda a falta de respeito que sinto pelo ódio, a falta de liberdade nunca me fez amar alguém.


Artigo publicado no Jornal de Notícias, 30/11/2016

Miguel Guedes
Sobre o/a autor(a)

Miguel Guedes

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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