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Domingues saiu, pois ainda bem

O facto é que Domingues, que se queixa de que essa lei foi feita contra ele, não percebe que todo o país sabe que estes administradores têm estado a exigir uma lei ad hominem para si próprios.

Fui dos que saudaram a escolha de António Domingues para presidir à administração da Caixa. Não o conheço pessoalmente, mas tudo batia certo: trazia experiência profissional num banco que se poupou a aventuras, não tinha vinculações que o menorizassem, não reproduzia o bloco central nem a agência de colocações, era um virar de página. Ao mesmo tempo, o governo conseguiu evitar a pressão para abrir a privatização e definir os contornos de um plano de recapitalização que, embora excessivo, era sempre necessário, e Domingues participou nesse esforço. Agora, no terceiro mês do seu mandato, reconheço que foi com alívio que soube da sua demissão.

A questão dos salários incomoda sobremaneira. Aquela equipa exigia receber mais do que o presidente do BCE, já que se fala de bancos, ou que o presidente dos Estados Unidos. Não me digam que é lei do mercado porque isso é uma farsa lamentável: estes banqueiros são eles próprios o “mercado” e são eles quem fixa a sua remuneração. Podiam ter sido comedidos e foram gananciosos, para mais acumulando pensões generosas.

Mas o debate sobre os salários esteve perdido desde o primeiro minuto. O PS, junto com o PSD e CDS, havia sempre de assegurar esta vantagem e, sabendo que cerca de um quinto dos membros de todos os governos anteriores ocupou depois cargos de topo na finança, percebemos a razão essencial desta atitude.

Ora, o que não se podia imaginar que suscitasse tamanha bernarda era a questão da obrigação da declaração de rendimentos. Primeiro, porque essa lei tem todo o sentido: quem gere a coisa pública tem que garantir ao país que não tem conflitos de interesses e que não beneficia ilegitimamente da sua função. Essas duas condições são decisivas para uma democracia. Segundo, porque os administradores tiveram todas as oportunidades para terminarem a novela e apresentarem a sua declaração de interesses, evitando o custo pessoal deste arrastamento e a vergonha por que passaram.

O Presidente explicou por duas vezes que os administradores são obrigados a apresentar a declaração. Podiam ter aproveitado o convite feito pelo Presidente, com quem Domingues falou, mas não apresentaram as declarações.

O Primeiro-ministro explicou que entendia que a obrigação se mantinha. Podiam os administradores ter aproveitado para apresentar as declarações, não o fizeram.

O Tribunal Constitucional pediu explicações sobre a não apresentação da declaração e nem isso foi aproveitado para encerrar o incidente.

Soube-se que Domingues tinha entretanto decidido apresentar a declaração, mas logo de seguida pôs a circular na imprensa que haveria um “memorando assinado” que lhe dava a garantia contrária (tal coisa nunca apareceu) e, logo depois, que não era um “memorando” mas eram mails (que nunca apareceram e que o governo desmentiu). Mostrou assim ao governo que não ia cumprir o prometido e que ia insistir na reivindicação de um estatuto especial que o dispensaria da obrigação da transparência.

O prazo para essa resposta ao Tribunal Constitucional, entretanto, terminava dentro de dias. E o que iríamos ter era esta extravagante artimanha jurídica: a afirmação de que a lei de 1983 obrigaria os gestores públicos, definidos como os que dirigem empresas “participadas” pelo Estado, mas que tal disposição não incluiria a CGD, pois não é “participada” (propriedade parcial) dado que é “detida” (propriedade total). Não imaginava que pudesse haver juristas que pusessem a sua assinatura num argumento segundo o qual a obrigação de protecção do bem público que obriga o administrador de uma empresa detida a 30% pelo Estado já não se aplica quando a percentagem sobe para 100%. Em todo o caso, seria este mais um passo na polémica infindável que atrasa a resolução do problema. Ora, o certo é que Domingues, com o pretexto da norma legal votada na 6ªf, aproveitou para bater a porta e poupar-se ao novo vexame desta explicação ao Tribunal, até porque sabia que ela seria rejeitada, se não ridicularizada.

Na minha opinião, o parlamento fez aliás muito bem em votar a norma que inclui na lei orçamental e que evita qualquer discussão interpretativa sobre a lei de 1983. O que me surpreende é que partidos que acham que os administradores são obrigados à declaração de interesses tenham votado para que o parlamento desse o sinal de que rejeita essa obrigação. Se pensavam que com essa pusilanimidade seguravam Domingues, então tinham que estar dispostos a dar-lhe a isenção que reclamava. E não estavam, o que não os dispensou de comentarem a demissão do presidente da Caixa como se ele fosse uma vítima de uma perseguição e não o criador do seu próprio imbróglio ao recusar o dever elementar da lei e da transparência.

O facto é que Domingues, que se queixa de que essa lei foi feita contra ele, não percebe que todo o país sabe que estes administradores têm estado a exigir uma lei ad hominem para si próprios, para terem um estatuto excepcional, para se protegerem de um dever que a democracia considera essencial.

Como suponho que se verificará em muito pouco tempo, agora o problema pode ser resolvido, com a nomeação de uma nova administração que nem sequer suscite a menor dúvida sobre o cumprimento da sua obrigação. E a Caixa poderá voltar ao seu trilho, para resolver os seus problemas.

Como também veremos sem dificuldade, a questão da estabilidade do sistema financeiro não está nem nunca esteve na Caixa e toda esta cortina de fumo só ajudou a atrasar os debates essenciais dos problemas essenciais.

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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