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Lições da vitória de Trump

O inesperado triunfo de Donald Trump nas eleições presidenciais dos EUA permite-nos tirar algumas lições.

1) As eleições já não se ganham ao centro

Uma explicação para a rendição dos partidos social-democratas ao neoliberalismo foi a ideia de que as eleições se ganham conquistando o eleitorado do centro, isto é, aquele cuja opção de voto oscila entre o centro-direita e o centro-esquerda.

Se isso já é discutível em tempos de relativa prosperidade, é totalmente falso em épocas de crise. Mais ainda, quando o mal-estar na sociedade não se limita às questões económicas e sociais mas contempla, igualmente, uma grande desafetação face aos políticos tradicionais e ao funcionamento do sistema político, as pessoas desejam uma mudança radical e o centro tende a implodir. As eleições presidenciais nos EUA são disso prova eloquente.

No campo republicano, o milionário Donald Trump, com uma retórica populista, nacionalista, xenófoba, racista e misógina, pontuada com constantes tiradas provocatórias e insultuosas, venceu, para surpresa geral, as “primárias” do partido, mesmo tendo contra si a maioria do aparelho republicano.

Ao manter a maioria do seu eleitorado conservador, machista, racista, extrativista, amante de armas, que odeia os políticos de Washington e tudo o que lhe “cheire” a intervenção estatal e captar, igualmente, a frustração dos operários industriais desempregados e outros perdedores da globalização, logrou ser eleito presidente da nação mais poderosa do mundo.

No campo democrata, a candidatura do senador Bernie Sanders, um septuagenário que se afirmou como “socialista” (na linha das velhas sociais-democracias europeias de antes da “terceira via”), constituiu uma “lufada de ar fresco”. Com um discurso sincero e frontal, denunciou o modelo neoliberal e as elites financeiras que o sustentam e dominam o país e o mundo, provocando o entusiasmo dos jovens, de uma parte da classe média e dos trabalhadores industriais brancos.

Porém, a intervenção descarada do aparelho do partido em favor da sua adversária, Hillary Clinton, da ala centrista do partido e encarada, por muitos, como representante das elites e dos principais lóbis financeiros e industriais, acabou por se revelar decisiva. Apesar de Sanders ter lutado até quase ao fim das “primárias”, foi Hillary quem logrou obter a nomeação como candidata presidencial.

Ao contrário do que pensavam os estrategos democratas, a eleição não foi vista pela maioria do eleitorado como um duelo entre o centro e a direita radical mas sim entre a candidata do “sistema” e o candidato autointitulado como “antissistema”, embora sendo dele parte integrante. E, aí, a vantagem seria sempre de Trump. Nada que não fosse previsível!

Arrisco afirmar que, se os democratas tivessem optado por Bernie Sanders, este teria ganho a eleição. Com efeito, a chave do triunfo de Trump foram os estados industriais deprimidos, situados junto dos Grandes Lagos (o chamado “rust belt”), onde predomina o operariado industrial branco, há muito fustigado pelo desemprego. A Pennsylvania, o Ohio, o Michigan e o Wisconsin, quatro estados ganhos por Barack Obama em 2012 e, significativamente, pelo veterano senador nas “primárias” democratas, acabaram por ir todos para a coluna republicana. Se tivesse ganho os quatro, a esta hora Bernie seria o presidente eleito dos EUA, mesmo que, ao contrário de Clinton, perdesse na Virgínia e no Nevada e, tal como ela, não ganhasse na Florida.

2) Afirmar-se como mal menor não vence eleições

Hillary Clinton acreditou que a campanha de baixo nível de Trump, com os insultos constantes, as suas tiradas racistas, xenófobas e misóginas, suscitaria, nos eleitores mais moderados, uma forte rejeição, que reverteria em favor da sua candidatura. Também os votantes de Bernie Sanders e, em geral, a esquerda norte-americana, bem como as minorias étnicas (especialmente os hispânicos e os afroamericanos) acabariam por se lhe render em nome do mal menor. Porém, se a maioria acabou por se resignar a essa opção, nem todos o fizeram: muitos ficaram em casa, uns poucos optaram por candidatos menores e outros votaram mesmo em Trump.

Se pensarmos bem, o que oferecia Clinton ao eleitorado? Que ideias novas ela apresentou? Sinceramente, não me lembro de nenhuma. Em boa verdade, a sua campanha assentou, quase exclusivamente, na necessidade de evitar a vitória do seu adversário. O que, convenhamos, não é muito mobilizador. Os estrategos de Clinton esqueceram as lições do “Brexit”: também aí os defensores da permanência na UE, em lugar de tentar convencer os eleitores da bondade dessa opção, preferiram invocar o caos que resultaria da escolha contrária. O resultado foi o mesmo!

Por seu turno, as minorias étnicas não se mobilizaram massivamente para votar em Hillary. Os afro-americanos, que, mesmo durante a presidência de Obama, continuaram a sentir, no seu quotidiano, a discriminação e a violência policial, não consideraram essencial eleger a candidata democrata. Afinal, se nem com um dos seus na Casa Branca conseguiram alterar, substancialmente, a situação, menos o achavam possível com uma presidente branca, mesmo que o seu marido e ex-presidente seja bastante bem visto entre a comunidade. Então, para quê votar?

3) Ser igual a si próprio é um trunfo eleitoral

Não podemos dizer que Trump foi autêntico. Na realidade, o vencedor das presidenciais conseguiu a proeza de, sendo um milionário e, portanto, parte do 1% mais rico do país, ter conseguido convencer “meio mundo” de que era um opositor ao sistema e um defensor dos norte-americanos mais pobres. Mas uma coisa é certa: durante a campanha, foi igual a si próprio. A truculência, os insultos aos adversários, as tiradas “politicamente incorretas” mostravam ao que ele vinha. Durante muito tempo, achei essa postura suicida. Mas a verdade é que, assim, Trump, não só segurou a sua base de apoio como criou, noutros eleitores, a imagem do homem forte e convicto, que diz o que pensa, sem “papas na língua” e sem ceder ao “politicamente correto”. Assim, o eleitorado, cansado dos políticos tradicionais e sedento de mudança, aderiu à mensagem do candidato republicano, dessa forma identificado com o pensamento dos cidadãos comuns e visto por estes como a sua voz.

Verdadeiramente autêntico era Bernie Sanders. Os seus discursos eram plenos de sinceridade e convicção: quando o ouvíamos, sentíamos que estava a dizer exatamente aquilo que pensava. Daí que a sua campanha tenha suscitado um grande entusiasmo, mesmo tendo-se declarado “socialista”, palavra ainda maldita nos EUA. Contra um candidato com essa postura, talvez a fraude que Trump constitui fosse mais facilmente desmascarada.

Ao invés, Hillary Clinton pareceu sempre “postiça”, quer na forma algo teatral como aparecia nos comícios, quer no discurso, estudado até ao pormenor mas, em grande parte, vazio de ideias. Para uma candidata tida como pouco credível, a campanha só serviu para aumentar as dúvidas de muitos eleitores relativamente à sua credibilidade e honestidade.

Por outro lado, o recurso inabitual à participação do presidente Obama e sua mulher, Michelle, e de várias celebridades do mundo do desporto e do espetáculo a apelarem ao voto foi uma demonstração de fraqueza da candidata, que sentia não conseguir impor-se por si própria.

4) O atual sistema comunicacional favorece o populismo

Nas sociedades atuais, marcadas pelo primado das redes sociais e da informação instantânea, sobra pouco tempo para a reflexão e o pensamento crítico. No seu afã de não serem ultrapassados, os media tradicionais preferem o efémero da “espuma dos dias” e o sensacionalismo que vende ou garante audiências à interrogação e à explicação da “causa das coisas”. A procura do escândalo, do “sangue”, sobrepõe-se à obrigação de (in)formar corretamente o leitor, ouvinte ou espectador. Daí que vivamos hoje em sociedades com acesso a uma grande quantidade de informação, mas onde a sua qualidade não abunda. Por isso, uma parte significativa da população torna-se presa fácil da retórica mais ou menos inflamada de qualquer demagogo bem-falante.

Nunca como hoje a maioria dos políticos foi tão escrutinada relativamente às suas práticas e, nalguns casos, às suas vidas pessoais, mas, paradoxalmente, nunca viram tão pouco escrutinadas as ideias que defendem. Por isso, os populistas têm o caminho aberto, especialmente quando sabem ser notícia.

Trump percebeu isso muito bem, quer usando o “tweeter” para insultar os seus adversários, quer fazendo declarações incendiárias, sabendo que os media, sedentos de audiências e de tiragens, não deixariam de as reproduzir. O seu estilo pouco convencional foi um maná para os media, também eles fartos do “cinzentismo” da maioria dos políticos “mainstream”. Assim, e apesar de ser milionário, não teve de gastar muito dinheiro na campanha: num país onde os tempos de antena eleitorais são pagos como qualquer anúncio publicitário, conseguiu ter uma grande parte deles de forma gratuita. Seguindo a máxima “não me importa que digam bem ou mal de mim, quero é que falem de mim”, tornou-se a figura central da campanha. E isso explica, em muito, as suas vitórias, quer nas “primárias” republicanas quer na batalha decisiva contra Hillary Clinton.

5) A falta de decência no debate político já não é penalizada

Esta é, porventura, uma das mais inquietantes lições que tiramos desta eleição.

Bill Clinton foi, durante muito tempo, apelidado de “candidato Teflon”: apesar dos escândalos em que se via envolvido (em especial, de natureza sexual), nada se lhe pegava. Ao contrário do marido, Hillary viu que tudo se lhe pegava, em especial a questão dos “mails”, que, embora revelem imprevidência e ligeireza no uso de meios públicos, estão longe de configurar uma situação de corrupção.

Ironicamente, teve de enfrentar como adversário um “Super Teflon”. Na verdade, apesar de todos os insultos e tiradas incendiárias que protagonizou, do vídeo em que revelava uma inaudita arrogância machista e de classe (a ideia de que, por ser rico e poderoso, tinha “carta branca” para assediar qualquer uma), da acusação de assédio sexual por parte de 12 mulheres, da revelação de que fugia aos impostos e, por fim, da notícia de que a sua atual mulher (eslovena de nascimento) entrara ilegalmente nos EUA, nada abalou a popularidade de Trump e evitou a sua eleição.

Até há poucos anos, dificilmente um candidato com essas características e essa postura chegaria “vivo” a uma qualquer eleição. O facto de isso não ter acontecido é um claro sintoma do descrédito em que mergulharam os políticos do “centrão”. Perante a corrupção, o clientelismo, o oportunismo, o carreirismo, a hipocrisia e o cinismo destes, cobertos pelo manto diáfano das boas maneiras, os pecados de Trump são vistos como menores e a sua truculência como frontalidade. Aliás, tivemos, na Europa, o exemplo de Berlusconi, então atribuído por analistas preconceituosos à particular mentalidade latina dos italianos. Com a eleição de Trump, fica claro que esse fenómeno é possível em todas as latitudes.

6) O sistema eleitoral nos EUA é anacrónico e injusto

Apesar de todas as críticas à campanha de Hillary Clinton e da sua clara derrota no número de votos eleitorais (248 contra 290 do seu adversário), a verdade é que esta obteve mais votos populares que Donald Trump (47,7% contra 47,5%), mesmo que, para isso, tenha contribuído o facto de o candidato republicano quase não ter feito campanha em New York e na California, estados populosos que considerava, à partida, perdidos. Assim, pela quinta vez na História do país, o candidato mais votado não ganha a presidência.

Mas a escalpelização deste ponto ficará para um próximo artigo.

Sobre o/a autor(a)

Professor. Mestre em Geografia Humana e pós-graduado em Ciência Política. Aderente do Bloco de Esquerda em Coimbra
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