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Desenvolvimento económico ou atenuação da pobreza?

As pensões não se substituem à política fiscal, mas não é desejável que se contradigam no combate às desigualdades e à pobreza.

O debate acerca do imposto sobre o património imobiliário de luxo levantou uma controvérsia que parece resolvida: não está em causa tributar mais a classe média, penalizada pelo anterior governo de Passos Coelho e Paulo Portas. Mas abriu uma série de outras questões que continua em aberto.

Uma delas foi colocada por Fernanda Câncio no Diário de Notícias num artigo com o título A Demagogia de Mortágua, onde se insurgiu contra canalizar a receita daquele imposto para o financiamento do aumento das pensões abaixo dos 628 euros, porque “a eficácia das pensões mínimas no combate à pobreza” seria duvidosa.

Esta visão levanta outra questão: afinal para que serve o Sistema de Pensões (no regime de repartição) e nele para que servem pensões mínimas? E a resposta moderna é, servem para diminuir a insegurança económica garantindo um rendimento de substituição aos aposentados próximo do rendimento de atividade para manter o seu nível de vida. O que conduz ao problema de saber quanto deve a sociedade a um trabalhador ou trabalhadora por ter contribuído com o seu trabalho e os seus descontos para o bem-estar das gerações suas contemporâneas e futuras.

Por exemplo, uma mulher que tenha trabalhado quarenta anos tem direito hoje a um nível mínimo de pensão. Se a pensão que resulta da simples aplicação da regra de cálculo tiver um valor diminuto, a esse valor adiciona-se um complemento social para garantir o valor mínimo legal garantido. Mas se, entretanto, ela contrair matrimónio com alguém de rendimento médio, de acordo com a visão de Fernanda Câncio, aquele direito desapareceria, porque o complemento social (que sai do Orçamento Geral do Estado e é inalienável daquela pensão) deveria passar a depender da verificação da condição de recursos. Aquela trabalhadora teria subitamente perdido os direitos adquiridos com o seu trabalho e os seus descontos por se ter casado e o contrato de trabalho celebrado deixaria de ser garantia do direito a segurança económica na velhice.

Quem discorda das pensões mínimas, normalmente, acaba por ser tolerante para com a liberalização do mercado de trabalho pela diminuição dos direitos dos trabalhadores, e também discorda do salário mínimo e das funções redistributivas e de estímulo da procura que ele assegura.

Esta forma de encarar o Sistema de Pensões tem outras consequências controversas. Negligencia a vertente relacionada com a sua função redistributiva. A distribuição das pensões é menos desigual que a distribuição dos salários. Isso resulta de as taxas de substituição (a relação entre valor da pensão e valor do último salário) serem mais altas para rendimentos mais baixos e das pensões mínimas. A desindexação das pensões mínimas em relação ao salário mínimo cortou esta função redistributiva, porque concentrou o Complemento Solidário para Idosos num universo reduzido de pensionistas, mobilizando menos transferências sociais e uma menor tributação dos rendimentos mais altos.

As pensões não se substituem à política fiscal, mas não é desejável que se contradigam no combate às desigualdades e à pobreza. A existência de pensões mínimas, de preferência indexadas ao salário mínimo, tem objetivos óbvios de justiça social, mas tem uma outra componente: dinamiza a procura das camadas pobres da população, muito numerosas, que não estimula importações e ajuda a promover pequenas e médias empresas e a criar ou sustentar emprego.

Quem discorda das pensões mínimas, normalmente, acaba por ser tolerante para com a liberalização do mercado de trabalho pela diminuição dos direitos dos trabalhadores, e também discorda do salário mínimo e das funções redistributivas e de estímulo da procura que ele assegura. Está em causa a tentativa de fazer deslizar o Sistema de Pensões para outro paradigma e para um modelo económico de inspiração neoliberal, que justifica o aumento das desigualdades com o fomento do crescimento económico virtuoso que, mais tarde, permitiria corrigi-las.

A verdadeira discussão é entre desenvolvimento económico, que o esquema de rendimentos mínimos procura articular com transformações estruturais e criação de riqueza potencial, onde os ganhos são largamente partilhados e estendendo as possibilidades das gerações futuras, e simples atenuação da pobreza, dirigida para a melhoria das condições da parte mais pobre da população considerada pobre, em vez de transformar as economias em que essa população vive. Acresce que nesta abordagem se costuma abstrair das caraterísticas sistémicas que determinam a própria pobreza.

Trata-se de escolher entre erradicar a pobreza e apenas a mitigar.

Sobre o/a autor(a)

Economista e professor universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda.
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