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“O turismo, se não devidamente regulado, pode ser um sector predador”

Em entrevista ao Esquerda.net, Mário Alves, especialista em Mobilidade e Transportes, defendeu que o turismo pode e deve ser potenciado, mas também enquadrado e regulado e até como forma de fonte de receita fiscal.

O boom turístico afigura-se, à partida, como um problema ou uma oportunidade no que respeita à mobilidade urbana?

O turismo, como muitos dos fenómenos de massas sem regulação, pode ter no início algumas consequências positivas mas, eventualmente, e se não devidamente regulado, pode ser um sector predador e contraproducente para o funcionamento das cidades.

Comecemos pelos efeitos positivos. A rede de elétrico em Lisboa levianamente destruída no século passado acabou por ficar com uns restos que, em grande medida, foram salvos pelo turismo. A Carris, nos anos 80, preparava-se para abandonar completamente as linhas de elétrico que ainda existiam quando começou a ser óbvio para a cidade que os elétricos de Lisboa acabavam por ser um ex-libris da cidade com um valor muito para além do transporte de Lisboetas. Mesmo assim estas linhas de elétrico sempre foram uma mais valia imensa para as populações idosas e não só. Apesar da crescente procura turística estas linhas de elétrico serviam, e ainda servem, a cidade de uma forma limpa e imprescindível. O espaço público de Lisboa e, em certa medida, do Porto, ganhou muito com a procura turística. Finalmente, e há poucos anos, percebemos que o espaço público é o espaço de fruição turística por excelência, e muitos dos investimentos foram dirigidos para zonas com grande afluência turística e os Lisboetas acabaram por beneficiar dessas reabilitações urbanas em que se favoreceu o peão e a bicicleta. O Turista é essencialmente um peão que faz muitos quilómetros a pé durante uma estadia numa cidade. É por isso essencial que as cidades compreendam que, para aumentar a atração turística, têm que investir em infraestruturas pedonais de qualidade. Com o envelhecimento do turismo é também óbvio que o espaço público tem que se começar a adaptar às necessidades especiais dos mais idosos que podem ser portadores de uma deficiência motora. Mais uma vez, não foi a população idosa das nossas cidades o principal motivo para mudar as relações de poder no espaço público, mas todos acabaram por beneficiar dos investimentos feitos.

Mas os turistas enchem os poucos elétricos que existem e sobrecarregam alguns percursos de transporte público, deixando apeado quem vive ou usa a cidade no seu dia a dia. Há falta de material circulante (elétricos) para servir os Lisboetas, mas uma parte deles estão a servir exclusivamente a fruição turística. Os investimentos no espaço público muitas vezes são dirigidos aos espaços monumentais e de fruição turística e não resta dinheiro para criar jardins no Bairro 2 de Maio na Ajuda, praças em Xabregas, ou ruas pedonais em Marvila. A rua do Arsenal (a rua dos Lisboetas) acaba por ser sacrificada ao desvios de tráfego do eixo viário junto ao Tejo.

Que desafios enfrentam atualmente as populações de cidades como Lisboa e Porto, face ao aumento exponencial do número de turistas, no que respeita à mobilidade no espaço intra urbano?

Certos percursos de transporte público (Belém, Príncipe Real, Elevadores, etc) estão em colapso por excesso de procura turística. O que poderia ser um potencial enorme para aumentar a oferta de transporte público em Lisboa acaba por se sentir como que um colapso da oferta em Belém ou Feira da Ladra com dezenas de pessoas sem lugar nos transportes públicos que passam.

Da mesma forma, não está ainda a haver um investimento no transporte público intra-urbano depois das infraestruturas de caminho de ferro terem sido destruídas durante a segunda metade do século XX. Viseu continua a ser a maior cidade europeia sem caminho de ferro. Muitas cidades Portuguesas com enorme potencial turístico continuam sem ligações ferroviárias frequentes e eficazes. Ainda é impossível transportar a bicicleta de Lisboa para o Algarve.

É possível apostar num modelo de planeamento e desenvolvimento turístico que dê voz aos residentes? De que forma esse modelo é exequível?

A cidade de Lisboa é a única capital Europeia que conheço sem plano de mobilidade - de facto, as maiores cidades portuguesas não têm plano de mobilidade. Um plano de mobilidade permitiria também a criação de um processo partilhado de construção de uma narrativa de futuro. Da mesma forma é sintomático que as câmaras municipais das principais cidades do país não têm uma estratégia clara sobre o enquadramento e regulação da avalanche turística que assistimos nos últimos anos. O turismo pode e deve ser potenciado, mas também enquadrado e regulado e até como forma de fonte de receita fiscal para contribuir para satisfazer necessidades básicas dos cidadãos das nossas cidades. 

O alojamento local dentro de quantidades razoáveis e devidamente enquadrado numa estratégia turística até tem a vantagem de distribuir as receitas por pequenos e médios empresários ou mesmo famílias que assim encontram um extra de sobrevivência. No entanto, se descontrolado, pode ter efeitos nocivos para as cidades - o que é bom para uns pode ser mau para outros e só com regras consensualizadas é que é possível encontrar equilíbrios positivos. Uma das formas será também envolver as Juntas de Freguesias de maneira a que, de forma integrada, encontrem limites de capacidade de alojamento. Havendo limites apertados, o alojamento turístico acabará por se espalhar de forma mais equilibrada pelos vários bairros da cidade.

Como poderão as cidades preparar-se para e responder ao boom turístico?

Criar condições de acessibilidade pedonal seguras e confortáveis será fundamental, especificamente garantindo condições de conforto para o turismo de idosos investindo na acessibilidade universal. O espaço público com poucos carros e com espaço de fruição será fundamental para não concentrar os fluxos turísticos só nas zonas históricas. Uma rede de transportes públicos eficaz permitindo o transporte de bicicletas ou cadeiras de rodas será fundamental para aumentar a apetência turística de Portugal.

No entanto, o turismo poderá também ter consequências muito nefastas nas nossas cidades. O próprio turismo surge para apreciar experiências genuínas e não para só ver outros turistas. É fundamental que as nossas cidades mantenham o seu património histórico e humano. O turismo poderá aumentar as rendas para preços que afastem os Portugueses dos centros das cidades (principalmente dos centros históricos). Terão de existir formas regulamentares e fiscais de maneira a evitar que tal aconteça. As cidades são palco de democracia e idiossincrasias próprias - uma cidade com excesso de turismo morre. Devemos observar e aprender atentamente com Veneza, Florença ou Barcelona - e não cometer os mesmos erros.

 

* Mário Alves - Especialista em Mobilidade e Transportes.

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Neste dossier:

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