You are here

Oportunidade para saudar um consenso de 40 anos chamado Escola Pública

Esse consenso é fruto da maioria social e política que deu à educação a missão constitucional de verdadeiro serviço público.

Aos Professores e Professoras,

No dia 5 de outubro de 1966 a OIT e a UNESCO aprovaram a Recomendação relativa aos Estatuto do Professor, um reconhecimento de direitos e responsabilidades tão importante que viria a dar origem ao Dia Mundial do/a Professor/a. Uma década mais tarde, a revolução de 1974 desaguava na Constituição da República Portuguesa e, dez anos mais tarde, na Lei de Bases do Sistema Educativo.

A Escola Pública continua a ser a primeira responsável por garantir que um filho de um médico e uma filha de um operário terão as mesmas condições para decidir o seu destino em verdadeira liberdade

Mais do que aplaudir as efemérides, reconhecer a importância destes três documentos é afirmar a atualidade das suas conquistas, exercendo-as. Esta é, por isso e, antes de mais, uma oportunidade para saudar um consenso de 40 anos chamado Escola Pública.

Esse consenso é fruto da maioria social e política que deu à educação a missão constitucional de verdadeiro serviço público com responsabilidade maior sobre a criação de igualdade social, democracia e progresso. Na sua versão original, o artigo 74º obrigava o Estado a “modificar o ensino de modo a superar a sua função conservadora da divisão social do trabalho”.

Bem sabemos que sucessivas alterações tentaram expurgar a Constituição de conceitos mais avermelhados mas a função social da Escola Pública nunca foi tocada. Por outras palavras, a Escola Pública continua a ser a primeira responsável por garantir que um filho de um médico e uma filha de um operário terão as mesmas condições para decidir o seu destino em verdadeira liberdade.

A educação, assim vista, é mais do que um direito individual à formação ou uma liberdade tolerada, é um direito coletivo ao progresso, ao desenvolvimento e à democracia, é uma responsabilidade da sociedade e uma obrigação do Estado.

A educação é mais do que um direito individual à formação ou uma liberdade tolerada, é um direito coletivo ao progresso, ao desenvolvimento e à democracia, é uma responsabilidade da sociedade e uma obrigação do Estado

É nesse contexto que o professor deve ser encarado, não apenas como um transmissor de conhecimentos e, não raras vezes, como mais do que um educador. O professor, e sobretudo o professor da Escola Pública, é um dos principais responsáveis pelo cumprimento da visão constitucional da Educação.

Esta visão da educação tem, aliás, raízes republicanas muito profundas em Portugal, uma herança que o Estado Novo tentou apagar, da mesma forma que tentou destruir qualquer tentativa de organização dos professores.

Ainda no século XIX, a Associação de Socorros Mútuos dos Professores do Ensino Primário, republicana na sua natureza, defendia que a ”escola tem capacidade por si própria para transformar a sociedade portuguesa”, capaz de tornar o cidadão “mais atuante e responsável pelas coisas públicas”.

É impossível falar de educação sem falar de professores, tanto que uma sociedade, e a importância que dá à educação, poderia ser avaliada pela forma como valoriza os seus professores. É por isso que, 10 anos depois da Constituição, a Lei de Bases do Sistema Educativo vem consagrar que “os educadores, professores e outros profissionais da educação têm direito a retribuição e carreira compatíveis com as suas habilitações e responsabilidades profissionais, sociais e culturais”.

A exigência para com a classe docente é, e deve ser, enorme. O que certamente não será possível é agarrar num professor, dar-lhe 1000 euros por mês, mudá-lo de escola todos os anos durante uma vida de precariedade e, depois, metendo-o/a à frente de uma turma de 30 alunos, dizer-lhe: agora vai educar cidadãos conscientes, críticos e livres.

O ataque à classe docente é, em si, um ataque à Escola Pública. Primeiro, porque as más condições de trabalho limitam as possibilidades de termos uma escola melhor, que cumpra os seus objetivos de igualdade de sucesso escolar. Depois, porque a desvalorização social dos professores é uma forma de quebrar uma das classes mais organizadas e melhor preparadas para defender a Escola Pública.

E se os anos da austeridade de direita foram particularmente violentos neste ataque, não podemos esquecer – como os professores não esquecem – que a demonização dos professores, assim como muitas das janelas que Nuno Crato transformou em portas, começaram com Maria de Lurdes Rodrigues.

Essa herança que nos ensombra o passado e ameaça o futuro da Escola Pública impôs-se contra a Constituição, a Lei de Bases e a Recomendação da UNESCO/OIT. Voltar ao caminho destes grandes consensos significa abolir a conceção conservadora que Nuno Crato imprimiu em todas as áreas do sistema educativo, dos currículos à gestão.

A revalorização social da classe docente é condição imprescindível para a melhoria da escola pública

A revalorização social da classe docente é condição imprescindível para a melhoria da escola pública. Isso implica, em primeiro lugar, afirmar a gestão democrática das Escolas e a participação dos professores no processo educativo, reclamar autonomia rejeitando a municipalização e recuperar para os critérios pedagógicos o que foi ocupado pela obsessão pela gestão empresarial.

Em segundo lugar, esta valorização social dos professores tem de corresponder a uma retribuição e carreira compatíveis com as suas responsabilidades, direito à formação continua, à estabilidade proporcionada pela vinculação e ao acesso à reforma em condições de dignidade.

Em terceiro lugar, é preciso renovar o compromisso da sociedade com a Educação, compreendendo que todos os cortes orçamentais feitos em nome da “sustentabilidade orçamental” do presente sequestram a esperança no futuro. É preciso investimento nas Escolas, é preciso diminuir o número de alunos por turma, reabilitar as escolas, universalizar o pré-escolar, cumprir a lei quanto à necessidade de equipas multidisciplinares e recursos humanos e físicos para uma verdadeira diferenciação pedagógica.

Se queremos proteger a Escola Pública temos de valorizar aqueles e aquelas que há 40 anos a constroem diariamente, já é tempo de renovar também esse compromisso

A direita traiu quase todos os consensos e até o da Escola Pública, mas isso não os torna menos atuais. No início do verão passado o país renovou esse compromisso quando se mobilizou massivamente contra o abuso dos contratos de associação e, uma vez mais, os professores e professoras estiveram na primeira linha de defesa da Escola Pública.

Se queremos proteger a Escola Pública temos de valorizar aqueles e aquelas que há 40 anos a constroem diariamente, já é tempo de renovar também esse compromisso.

Sobre o/a autor(a)

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
Comentários (4)