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Como acabar com a precariedade no turismo

Num sector altamente concentrado - 1% das empresas são responsáveis por 64% do volume de negócios e 32% do emprego - não admira que os patrões queiram uma mudança na lei laboral de forma a legitimar o que são hoje práticas abusivas e uma informalidade constante. Por Adriano Campos.
Foto do site da Tomaz Douro.
Foto do site da Tomaz Douro.

Quem viu a série Little Britain recordar-se-á, com certeza, da pior guia turística do mundo, a Carol, que num autocarro por terras espanholas, anuncia calmamente aos seus compatriotas que se olharem para sua direita, poderão ver Espanha, e se, porventura, olharem para sua esquerda, é Espanha que poderão ver. A paródia facilmente poderia ser transposta para o vizinho ibérico, onde o aumento do turismo nos últimos anos tem sido anunciado com o triunfalismo de um ganho coletivo, uniformizado, num discurso pouco dado a enfrentar as contradições do sector. De todos os problemas (ou desafios, como diria a direita), a questão urbana será a mais urgente, conjugando os temas da habitação, transporte e direito ao espaço público em modelos de cidade antagónicos. Mas atualmente, talvez nenhum processo afete de forma tão transversal estas questões como a precarização do trabalho no turismo.

Sazonalidade ou exploração?

Em resposta ao protesto de trabalhadores do sector, António Costa aludiu à sazonalidade "que não se combate com leis" como um dos problemas da insegurança laboral conhecida. Acontece que Portugal nunca recebeu tantos turistas como nos últimos dois anos, o que faz jus a um sector que  viu as suas receitas duplicarem na última década, alcançando proveitos na ordem dos dois mil milhões e meio de euros (Turismo de Portugal). Já o aumento do emprego, louvado por tantos,  é na verdade uma falácia: em 2010, havia mais 32 mil pessoas empregadas no sector do turismo do que em 2015 (INE). Esta dinâmica agrava-se pela prática recorrente de despedimento encapotado durante os meses de inverno, período em que muitos trabalhadores são chantageados a cessar o seu contrato de trabalho, voltando a trabalhar nos meses de maior atividade. Esta prática é a regra, por exemplo, nas empresas de turismo do Douro, como a Tomaz Douro e a Douro Azul (lembre-se disto sempre que fizer um cruzeiro).

Num sector altamente concentrado - 1% das empresas são responsáveis por 64% do volume de negócios e 32% do emprego (Banco de Portugal) - não admira que os patrões queiram uma mudança na lei laboral de forma a legitimar o que são hoje práticas abusivas e uma informalidade instalada. Já não bastava o recurso permanente a empresas de trabalho temporário que ajudam a manter os salários muitos baixos (segundo o Turismo de Portugal, o rendimento médio anual de um trabalhador na hotelaria e restauração é cerca de 37% inferior ao do conjunto da economia) é preciso, dizem esses mesmo patrões, precarizar ainda mais a duração e os direitos sociais dos contratos de trabalho. Na verdade, o problema da precariedade no turismo não é a sazonalidade da atividade, mas sim o facto dos responsáveis pelo sector aceitarem as projeções de crescimento acelerado para realizarem investimentos imobiliários avultados, aceitando de bom grado os riscos financeiros, e recusarem essas mesmas projeções para garantir empregos permanentes e seguros, alegando o risco da sazonalidade.

Durante os anos da troika, a porta que se abriu a estas grandes empresas chamou-se desmantelamento da contratação coletiva, que em muitos casos era a última barreira para travar alguns abusos, como o recurso ao layoff e o trabalho extraordinário não declarado. Recuperar o direito destes trabalhadores passa por reverter essa tendência, reconstruindo os contratos coletivos e criando um plano nacional de combate à informalidade e ao trabalho não declarado no turismo, onde a Autoridade para as Condições do Trabalho deve ter um papel central. Excluir as empresas que pratiquem abusos laborais do leque de apoio público (seja financeiro ou fiscal) é também uma necessidade imediata para conter a selva do sector.

Economia partilhada ou uberização da vida?

O massacre fiscal sobre a restauração explica parte da evolução negativa do emprego num sector em franco crescimento, mas os impactos da chamada economia partilhada não podem ser esquecidos. Só em 2015, alegadamente 921 mil pessoas recorreram à Airbnb na sua visita a Portugal. O modelo é conhecido: o elogio da partilha e da troca comunitária  que oferece o conforto de um lar em vez da fria formalidade de um hotel. Na sua maioria, os "anfitriões" são pessoas que lutam para equilibrar o orçamento familiar e  para quem a mercantilização do seu espaço íntimo é uma cedência necessária. O que levou Berlim e Barcelona a proibir ou limitar este serviço não foi, todavia, o modelo de coabitação mas o crescente número de moradias transformadas em redes privadas de alojamento de curta duração, diminuindo o acesso à habitação permanente para as famílias.

Em Portugal, estes casos estão presentes por todo o centro histórico de Lisboa e do Porto.Numa denúncia recente, recebida pelos Precários Inflexíveis, uma trabalhadora recém-licenciada dizia trabalhar há um ano, recebendo o salário mínimo, pago a falsos recibos verdes, para gerir 14 apartamentos na baixa do Porto inseridos na Airbnb.  Foi contratada por uma agência imobiliária e tem de agendar diariamente os serviços de limpeza dos apartamentos e de transporte dos turistas, pagos de forma não declarada. Cada apartamento tem uma conta falsa e autónoma na Airbnb, de forma a não levantar suspeitas.

A escolha por este modelo é apelativa: menos impostos (5% contra os 28% da habitação permanente) e mais rendimento, que em alguns casos pode quintuplicar o valor de renda mensal. Temos assim a troca comunitária transformada em negócio privado, num processo regulado por empresas como a Airbnb, cujo valor de mercado é equivalente ao PIB da Estónia (perto de 25 mil milhões de euros). O mesmo acontece com a UBER, com cada vez mais motoristas (contratados a falsos recibos verdes) a trabalhar para terceiros, que por sua vez lidam diretamente com a operadora. Uma vez mais, menos impostos, mais precarização, ausência crescente de partilha. 

Para agravar a situação, toda a pressão pública que estas entidades promovem para a sua acomodação e legitimação legal, baseia-se na irreversibilidade do seu modelo, que se apresenta como moderno, eficaz e vanguardista. O argumento principal, replicado em todos os jornais, é o número crescente dos seus utilizadores, periodicamente divulgados pelas próprias empresas. Mas como falamos de entidades privadas, que propositadamente se mantêm fora da esfera bolsista, não há qualquer tipo de auditoria externa ou controlo sobre estes mesmos números. 

A exaltação do turismo movido pela economia partilhada esconde um submundo de precarização e exploração, onde o ideal de comunidade é usado para legitimar práticas de acumulação privadas, transformando trabalhadores em pretensos empreendedores individuais. O enraizamento destas práticas revela a urgência em combatê-las, aliando uma nova lei do arrendamento local a uma estratégia clara de escrutínio independente destas entidades, proibindo a sua utilização, particularmente nos casos em que ocorra subcontratação de trabalhadores. O debate público faz-se destas urgências, assim como a escolha pelo uso ou não destes serviços  e a organização dos trabalhadores afetados depende da nossa ação coletiva.


* Adriano Campos - Sociólogo, membro da direção da Associação de Combate à Precariedade - Precários Inflexíveis.

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Neste dossier:

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