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Banca pública, interesses privados?

Se uma batalha foi ganha (a da capitalização pública) falta ganhar a guerra: a de uma banca pública ao serviço do interesse coletivo.

Queremos presumir da bondade do governo no que respeita ao compromisso de uma nova orientação estratégica da banca pública, da mesma forma que queremos presumir da bondade dos novos administradores para a aplicar. A inflexão estratégica deve resultar da definição clara da missão de serviço público cometida à empresa a qual se refletirá obrigatoriamente no modelo de organização, com a necessária segregação de funções e tarefas, o lugar devoluto ao controlo, o processo de nomeações e o perfil dos nomeados, etc. Ora, se ainda não nos foi dada a conhecer a missão de serviço público que será cometida à CGD, o mesmo não sucede com pontos fulcrais da sua “nova” organização e, neste sentido, por mais voltas que demos, deparamo-nos com o inexplicável, a saber: o modelo proposto ao BCE e que foi, em parte, “chumbado” por este é o da banca pública de uma república bananeira, não a de um país minimamente “sério” e, a fortiori, democrático.

Quiseram as circunstâncias que fosse o órgão sem qualquer legitimidade democrática que é o BCE, a pronunciar-se sobre aspetos que os princípios da ética e da boa governação a par da regulamentação na matéria exigem, e que o Governo teimou em calcar não obstante as chamadas de atenção vindas repetidas vezes a público. Louvamos o Governo por ter conseguido negociar com Bruxelas a não-assimilação da capitalização da banca pública a uma ajuda de Estado, mas não podemos senão reprová-lo no modelo de organização que queria e/ou quer implementar: desde o aumento do número de administradores numa empresa que se pretende amputar de milhares de postos de trabalho, aos conflitos de interesses decorrentes da presença na administração de representantes de grupos privados em relação de negócios com a CGD e aos subjacentes ao modelo de controlado-controlador, passando pela política de género reveladora de um machismo de Estado inaceitável.

Ver o opaco BCE a “preocupar-se” mais com transparência do que o governo português e com as incompatibilidades das nomeações que este pretendia fazer à cabeça da empresa pública com a própria lei do País de que ele deveria ser o fiel guardião, eis que pode parecer a priori risível, como risível pode parecer a ponta de feminismo a mais – ou de machismo a menos – deste órgão supranacional em relação a um governo nacional de que se poderia legitimamente esperar que fizesse da luta pela igualdade de género, na condução das empresas – e a fortiori das empresas que tutela – um dos seus cavalos de batalha.

Aqui param todavia as nossas referências ao BCE, cujo objetivo não era, de forma alguma, o de louvar o banco central – desprovido, repetimo-lo de qualquer legitimidade e intentos democráticos – mas tão-somente o de pôr em evidência, por contraste, o nível a que desceu o governo português nesta matéria. Isto, porque de fora das críticas do BCE e até, com a sua bênção, ficaram aspetos não menos preocupantes que importa realçar.

O primeiro tem a ver com o fim dos tetos salariais dos gestores públicos, que levaram à alteração do estatuto de gestor público. O mínimo que se poderia esperar do governo era que fosse bater a outra porta, quando o então vice-presidente do BPI exigiu como contrapartida para assumir as rédeas da banca pública que se eliminassem os tetos salariais a aplicar a si e aos seus pares. Em vez disso, o governo acatou e legiferou para que a sua vontade fosse cumprida. A preocupação do gestor de uma empresa pública e a fortiori de um banco público – e do governo que o nomeia - é a res publica, é a capacidade de “sentir” a missão de serviço público e de agir no sentido de a corporizar. Ser gestor público deve corresponder a uma vocação, não ao exercício de funções permutáveis com o privado. O que o governo deveria fazer era limitar as remunerações dos dirigentes do setor privado, não fazer implodir os tetos salariais do setor público, cavando ainda mais a obscena e intolerável discrepância das remunerações no seio das empresas do nosso País.

O segundo aspeto preocupante que deve interpelar-nos são os interesses não representados no Conselho de Administração da Empresa Pública. O mesmo governo que diz querer redefinir a missão da banca pública por forma a que esta se possa colocar ao serviço da economia, é o mesmo que aceitou ver representados no Conselho de Administração os grandes grupos económicos nacionais e estrangeiros, de forma quase exclusiva. Quid da representação das pequenas e médias empresas portuguesas que correspondem a 97% do tecido empresarial do nosso País como o lembrou há pouco e, a este respeito, o economista Eugénio Rosa? Ou estará o governo à espera que os seus interesses sejam corporizados e assumidos pelos representantes dos grandes grupos económicos? Quid da representação dos interesses dos consumidores que seria mais do que legítima na banca pública? Quid da representação dos trabalhadores deste país? Se, porventura, alguns dos setores da sociedade civil supramencionados não tiverem experiência bancária que se tranquilizem os espíritos. Que se lembrem dos casos BPN, BPP, BCP, BES, BANIF e, sobretudo que tenham sempre presente que a questão da banca pública é uma questão eminentemente política, antes de ser económica ou técnico-bancária.

O terceiro aspeto preocupante que persiste, é o do modelo do controlado-controlador alegremente “validado” pelo BCE a título “provisório” e sujeito a apreciação daqui a seis meses. Mas acaso cabe na cabeça de alguém exigir que os seus atos de gestão (ou do órgão que tutela) sejam controlados por quem está sob a sua alçada e que o acionista possa abdicar das suas prerrogativas de escolher os controladores, deixando-as aos controlados? Não, não se trata de pôr em causa a ética de ninguém, trata-se sim de exigir que sejam respeitadas, na banca pública, as regras elementares da boa governação. Neste aspeto, o governo vai de contradição em contradição. Depois de ter começado por explicar que o aumento do número de administradores não executivos (que, finalmente, não se viria a concretizar) se devia à necessidade de dar a estes o tempo suficiente para controlar os atos de gestão dos executivos, o governo veio-nos dizer que não havia qualquer problema na acumulação num só indivíduo das funções de condução da gestão e do controlo da mesma, devido ao facto de haver um único acionista! Ora, é precisamente devido ao facto de haver um único acionista – e de esse acionista ser o Estado – que as funções de controlo, normais em qualquer empresa e a fortiori em empresas sistémicas como é o caso da banca, devem assumir a maior relevância.

O modelo do controlado-controlador é motivo de uma apreensão tanto maior quanto a proveniência dos controlados e controladores é praticamente a mesma: o banco privado BPI. Com efeito, para além de tal homogeneidade ser nefasta do ponto de vista da gestão de uma empresa que deve implicar diversidade criadora, e garantir a continuidade da gestão, ela é potencialmente favorecedora de conluios, não acautelando o interesse público. Repito, não se trata de pôr em causa a ética de ninguém, mas sim de afirmar que a condução de qualquer empresa (e a fortiori de um banco público) deve apoiar-se num modelo organizacional exemplar promovendo uma exigente segregação de funções e tarefas e a distinção clara entre órgãos de gestão e de controlo. Se a banca é um assunto demasiado sério para ser deixado aos banqueiros, esta afirmação reveste ainda maior acuidade tratando-se da banca pública.

Eis porque consideramos que todos os cidadãos e forças que defendem a existência de uma banca pública não se podem comprazer na vitória alcançada pelo governo na manutenção da CGD na esfera pública. Adormecer sobre esta vitória, é esquecer os interesses primordiais não representados na banca pública e aceitar um modelo de governação não acautelador do interesse coletivo; é esquecer que a banca pública pode continuar, como no passado, a constituir um instrumento de transferência de valor da esfera pública para os grandes grupos económicos de que seria exemplo, a compra pela CGD da filial do BPI em Angola, cuja eventualidade já foi evocada; é esquecer enfim, que, quando nos congratulamos com a Caixa que se mantém pública, não é da mesma Caixa que falamos: em cima da mesa, estão de novo supressões de centenas de balcões e de milhares de postos de trabalho e a alienação total ou parcial de delegações em países onde residem os nossos emigrantes. E, no meio disto tudo, continuamos a deparar-nos com a ausência gritante da definição da missão da banca pública e do debate que lhe deve estar subjacente, tratando-se de um banco que é de nós todos.

Se uma batalha foi ganha (a da capitalização pública) falta ganhar a guerra: a de uma banca pública ao serviço do interesse coletivo.

Artigo publicado no “Público” em 12 de setembro de 2016

Sobre o/a autor(a)

Doutorada em Ciências de Gestão pela Universidade de Paris I – Sorbonne; ensinou Economia portuguesa na Universidade de Paris IV -Sorbonne e Economia e Gestão na Universidade de Paris III – Sorbonne Nouvelle
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