You are here
Os combates nevróticos contra o burquini
O burkini foi proibido por várias câmaras municipais francesas, o tribunal interditou a proibição, os presidentes das câmaras insistem. Esta tragicomédia lembra o que Sartre escreveu no seu prefácio aos Damnés de la Terre: “A França, outrora, foi um grande país, tenhamos em atenção que não se torne em 1961 o nome de uma nevrose”. Foi há mais de cinquenta anos. Mas, mesmo agora, será só uma nevrose?
Parece que não, é também uma política. Valls, primeiro-ministro socialista, bem como Sarkozy, ex-presidente e candidato presidencial, precipitaram-se no apoio à extrema-direita francesa nesta proibição. Parece que, para esta gente, o fato de banho em causa lembra que aquelas mulheres são muçulmanas, e esta religião suscita comoção pública e ameaça à ordem – pelo menos no caso pessoal desses políticos.
Alguns jornais e revistas lembraram que um fato de banho deste tipo é usado por funcionários públicos na Austrália, que as mulheres judias ortodoxas usam um parecido (na imagem ao lado), ou que há uns anos em Portugal era imposto por lei que os homens cobrissem grande parte do corpo e as mulheres mais ainda, ou que as convenções e roupas mudaram ao longo dos tempos de acordo com costumes e histórias. A moda pode aliás recuperar o que tinha sido abandonado, como se verifica no anúncio que reproduzo ao lado: seria esta mulher acusada de ser uma muçulmana perigosa e obrigada pela polícia a despir-se numa praia de França? Alegar que há um padrão de roupa que é ilegalizável parece portanto um absurdo.
O argumento sobre a religião muçulmana é ainda mais grotesco porque se resume a isto: incomoda que aquelas mulheres pareçam ser o que são, muçulmanas. Um jornal francês lembrava que, em setembro de 1933, houve um jornalista que criticou os judeus a propósito da tomada do poder por Hitler na Alemanha: “É evidente que faltou prudência aos Judeus. Fizeram-se notar demasiado”. Alguns usavam kippahs na cabeça e, no caso dos judeus ortodoxos, um padrão de roupas que era identificável nas ruas (e o dos funcionários da City de Londres não é identificável nas ruas, e podem ser bem perigosos?). Fizeram-se notar e veio o nazismo obrigá-los a usarem uma estrela amarela, por via das dúvidas.
Nevrose, então? Uma política enlouquecida, correndo atrás de pretextos, ansiosa por marcar novas discriminações? Uma sociedade angustiada por fronteiras, por demarcar objectos e pessoas que possam ser detestados? Talvez seja simplesmente e somente mais um desses episódios das pequenas lutas de luz e sombra em que se testa a nossa cultura e em que se dão passos em frente ou para trás no respeito pelos outros e na conformação das nossas comunidades.
O debate sobre a legalidade do burkini é simplesmente um sintoma da profunda desorientação em França. A bússola avariou-se e isso terá sempre consequências mais surpreendentes e porventura chocantes.
Artigo publicado no blogue Tudo menos economia
Comments
Porquê? A pergunta que deve
Porquê? A pergunta que deve ser feita é esta:
Porque é que a questão da proibição de um traje numa praia de cascalho a milhares de quilómetros de distância bateu tão fundo nas esquerdas europeias e a nossa não foi excepção?
Porque a verdade é que nós não queremos admitir, mas nós não estamos a discutir o burquini, nós estamos a discutir xenofofia e racismo mas estamos também a discutir o Islão, feminismo e laicidade do estado.
A relativização cultural desta questão ao debate de um traje ignorando a sua simbologia e fazendo comparações com as mais diversas formas de "beachwear" ignora propositadamente o significado político que esta indumentária tomou no seio de uma das maiores religiões do mundo por uma minoria salafita wahhabita, que faz da submissão das mulheres o pilar central da sua prática religiosa.
Podem existir dúvidas se a proibição da indumentária vai fazer algo para combater esta visão religiosa machista, homofóbica e esmagadora dos mais básicos direitos do homem, mas mesmo que assim seja temos pelos menos de admitir que este problema existe, está aqui e para durar, não é uma moda de verão, é um manifesto.
É redutor, em si mesmo, considerar que esta é uma questão de comparação de comprimento de tecido, nível de cobertura de cabelos ou designar 30 edilidades francesas como focos concentrados de islamofobos radicais, sendo que algumas das votações foram efectuadas ao que sei com o apoio de partidos de esquerda, ou então ir ao extremo de chamar a esta discussão, freiras e fatos de mergulho.
O laicismo como todas as ideias, pode ir longe demais, e se for, eu próprio não ignoro que as probabilidades de ir longe demais em França são mais altas do que em qualquer outro país no mundo, mas nunca nenhum princípio laico na história, foi tão longe do esmagamento dos direitos fundamentais do homem - essencialmente conquistas da esquerda - como as teocracias.
Se vivêssemos no séc. XIII as mais perigosas e homicidas teocracias do mundo seriam de inspiração cristã, hoje elas são de inspiração muçulmana, e isso aconteceu por que por um lado o cristianismo foi derrotado a ocidente por ideais humanistas que se podem à falta de melhor termo se podem designar de esquerda em sucessivos sobressaltos que iam acumulando conquistas sociais e por outro lado o imperalismo e essencialmente o sionismo eliminaram com tal brutalidade e eficácia as lideranças progressistas muçulmanas que o restou para unir as suas vítimas foi o carácter unificador do fundamentalismo religioso, assistindo-se assim à regressão civilizacional, nomeadamente no papel das mulheres na sociedade de que o Irão, Afeganistão e Egipto servem de poster (a Arábia Saudita é diferente).
Todas as "modernas teocracias" são baseadas em manifestos políticos que pela sua própria natureza só podem ser globais. A essa globalidade unem sempre a intolerância, essencialmente contra o laicismo até porque este é, como é lógico o seu contrário e portanto o primeiro inimigo a abater.
As actuais teocracias muçulmanas têm bem presente algo de que nós parecemos ter esquecido, até Francisco Louçã, aquilo que foi definido por Karl Popper no que definiu como o "Paradoxo da Intolerância":
Se uma sociedade for tolerante com a intolerância o que acaba por acontecer não é o reforço da tolerância mas a vitória da intolerância.
(Esta situação já foi debatida inúmeras vezes, nomeadamente acerca da autorização ou não de símbolos do nazismo por exemplo, cuja comparação não estou a fazer com a situação do burquini como é óbvio)
E é esta a esta pergunta que os franceses - pasme-se da esquerda à direita - estão a tentar responder enquanto sociedade, se uma minoria, de uma minoria religiosa se radicaliza, onde é colocada a linha vermelha entre a tolerância religiosa e a manutenção de um estado de direito que protege os direitos individuais de todos, inclusive, dos crentes dessa fé?
Não ignoro e não defendo que exista uma ligação entre a descoberta do corpo de uma mulher e a sua libertação do machismo que a oprime, seria ridículo, mas também é verdade que defender o uso do burquini como símbolo libertário ou o passo certo para a derrota do machismo está exactamente ao mesmo nível de argumentação, enviesada do princípio que se quer combater.
Se acrescentar-mos a isto a descontextualização do debate sobre o que está por detrás do burquini, no momento que a França atravessa, então reduzimos isto a um debate cego sobre direitos individuais acerca do traje, no ordenamento jurídico francês, o que é sempre errado, porque acaba numa discussão similar à questão sobre a posse de armas nos Estados Unidos, que não se pode negar estar consagrado constitucionalmente, mas cuja realidade parece pelo menos impôr que se discuta olhando tendo em atenção o espaço temporal das leis.
O problema é que no nosso debate sobre esta questão, que é feito de política, de princípios, e de causas, não só não estamos a conseguir responder a estas a perguntas, como estamos a fazer pior do que isso, alguns de nós demos uma curva errada em algum lado no nosso activismo de esquerda feminista, e acabámos a fazer claque num desafio de uma minoria salafista ao laicismo do estado francês. E nem sequer nos apercebemos que, para além de intolerantes os salafitas acabam de fazer "copyright infringement" da nossa plataforma política ao utilizarem os nossos argumentos a favor da despenalização do aborto - o direito absoluto da mulher ao seu corpo - em favor do uso de um símbolo que significa precisamente o seu contrário, a sua submissão ao esposo.
O facto disto acontecer num partido que tem a sua génese precisamente nesse combate deixa-me perplexo.
Só me ocorre uma única explicação para esta contradição, as forças de esquerda que originaram o Bloco tinham antes da sua formação, a questão da separação entre a igreja e estado completamente definida e mais do que arrumada. Logo após a sua fundação tendo como génese o combate a favor da despenalização da interrupção voluntária da gravidez, o Bloco a nível internacional, bateu-se desde sempre contra a neo-colonização imperialista que teve início com a invasão do Iraque e que tinha como sustentação moral uma ideia assassina e racialista de "exportação dos valores democráticos do ocidente".
Tudo isso era mentira e foi provado. A ambição era o confisco dos recursos desses povos e a dominação geo-estratégica da única potência global que se encontrava em expansão naquele momento, através de governos fantoches que não tinham o apoio popular e portanto também não tinham a legitimidade política, dissemos isso e prová-mo-lo.
Dissemos que o resultado seria a desestabilizarão da região e a radicalização dos ódios latentes e o resultado foi a crise dos refugiados.
Como estivemos sempre do lado certo, na questão dos refugiados denunciamos a islamofobia europeia da direita e o vergonhoso acordo com o fascista Erdogan.
E depois...caímos do cavalo abaixo. Como estivemos sempre do lado dos oprimidos e no calor das nossa lutas confundimos a beira da estrada com a estrada da beira. Começamos colectivamente a relativizar de tal forma os abusos dos direitos humanos realizados pelo extremismo islâmico que acabamos a desculpabilizá-lo e a ignorar propositadamente as suas ambições expansionistas no nosso discurso, para não dar o flanco à extrema direita. E como estratégia política de curto prazo até faz sentido. De curto, não de longo.
Caímos numa visão euro-centralizada que está disposta a rasgar as vestes por uma mulher cerceada dos seus direitos numa praia de Cannes, mas que relativiza culturalmente a condenação à morte de meninas a partir dos nove anos de idade no Irão, dizendo que a mesma nada tem a ver com a prática da religião num país onde o ordenamento jurídico deriva dela. Como é que se explica isto?
Assisti a debates sobre esta matéria onde a situação de igualdade de género entre as mulheres francesas e sauditas é colocada em igualdade de grau e onde alguém comparou a penalização opressiva da maquilhagem à burca.
http://revistamarieclaire.globo.com/Mulheres-do-Mundo/noticia/2016/02/es...
Confundimos neo-colonismo com anti-ocidentalismo e demos ao oprimido o direito de oprimir. E entre nós radicalizámos de tal forma posições que alguns dos activistas de esquerda temem agora emitir opinião contrária ao que parece ser a da maioria do partido sobre esta e outras matérias, não porque o contraditório tenha alguma vez sido desincentivado no partido, antes pelo seu contrário, mas porque temem ser apelidados de forma imediata "islamofóbicos racistas com complexo de superioridade ocidental".
Numa esquerda inclusiva, mas que só faz sentido, se mesmo nas suas divergências internas se mantiver essencialmente neo-marxista, temos assim hoje, o paradoxo de se assistirem a debates com ateus a exercerem um esforço de auto-censura para não ofenderem os "amiguinhos imaginários" de alguns camaradas que se possam encontrar na sala, enquanto se discutem direitos humanos em locais geograficamente localizados a sul de Sagres. Com outros a fazerem recuar a discussão sobre feminismo trinta anos, defendendo a valorização do argumento consoante o género de quem o emite.
Estamos a cometer exactamente o mesmo erro estratégico de observação da realidade que apontamos ao imperialismo global. Por vezes o inimigo do nosso inimigo NÃO é nosso amigo.
O Islão na sua visão mais radical representa tudo o contrário do que o Bloco de Esquerda defende.
É uma visão simplista, eu sei, mas tenho que a colocar para que se perceba exactamente o que significa a frase anterior. Sob o ponto de vista académico podemos ignorar a evidência de que se um dia uma teocracia islâmica se instalasse neste território, os militantes e activistas do Bloco de Esquerda pelo que defendem e pelo que representam, (feministas, activistas LGBT, ateus, comunistas ect,) teriam que ser as suas primeiras vítimas?
Podemos continuar a reduzir isto a traje de praia?
Corremos o risco de ser aquilo que Marieme-Helie Lucas, Socióloga Argelina e fundadora da Rede de Mulheres sob Lei Islâmica designou como "esquerda pós-laica com medo que lhe chamem islamofóbica".
E é por isso que a relativização deste caso é tão perigosa, e por isto que o debate sobre esta matéria está inquinado desde o princípio, há quem queira falar de tecidos e freiras e há quem queira de falar da relação entre a esquerda e Islão radical, porque na verdade Francisco, não só é a França que está confusa, com o enorme respeito que tenho por ti...tu também estás.
Abraço
Paulo
Add new comment