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Não sou Orlando, sou LGBT

Orlando não foi o alvo principal. O alvo principal é o mesmo alvo de quando chamas paneleiro ao teu colega, “contra-natura” ao teu filho ou à tua neta; o mesmo alvo de quando insultas um casal de mulheres na rua; é o alvo de quando achas que “homossexuais está bem, mas bichas é que não”.

Foi, alegadamente, o tiroteio mais mortífero da história dos Estados Unidos, onde a violência armada é uma realidade brutal. De acordo com as organizações Gun Violence Archive e Mass Shooting Tracker, ao 164º dia do ano de 2016, 207 pessoas tinham sido mortalmente feridas, em cerca de 176 tiroteios, 133 destes considerados “em massa”.

Podemos, para já, abster-nos de comentar a política absurda dos EUA a respeito da posse de arma, para nos focarmos no seguinte: o tiroteio mais mortífero da história de um país campeão em tiroteios foi direcionado a pessoas LGBT, tendo sido também o maior massacre de ódio direcionado a pessoas LGBT desde o nazismo.

Após o choque, a tristeza, a revolta e a frustração, importa fazer algumas reflexões.

Na noite após o ataque, no canal Sky News, em Inglaterra, o jornalista do Guardian, Owen Jones, assumidamente gay, abandonou o estúdio durante o comentário político que nessa estação se fazia acerca do massacre, após o moderador e a sua colega de painel terem insistido que este era um crime, “contra pessoas que se queriam divertir, como no Bataclan”1. Não há mortes mais graves que outras, é certo; mas os crimes não são todos iguais. Este foi um ataque a pessoas LGBT, um ataque homo-bi-transfóbico. É, portanto, um crime de ódio, e o crime de ódio tem, nos Estados Unidos, como em Portugal e em tantos outros países do mundo, um enquadramento legal específico. Porquê? Porque a motivação do crime não nasce nem morre com a organização ou indivíduo criminoso, correspondendo a um fenómeno de preconceito que se revela nos maiores, mas também nos mais aparentemente insignificantes atos de violência. Porque ele é dirigido a quem já sente o ódio no seu dia-a-dia. Porque ele se integra num ciclo de violência e de discriminação que é permanente: nos gestos e nas palavras, nas famílias e nas escolas, no trabalho, na doença e na rua. Porque ele afecta as pessoas que não foram mortalmente vitimadas como em nenhum outro crime: incute-nos o medo, inibe o exercício da nossa liberdade, aumenta um terror que conhecemos bem, afecta-nos a todos e a todas que pertencemos ao grupo social ao qual é dirigido o ataque. Porque “Terrorismo direcionado a pessoas LGBT” é uma redundância” por si só.2

Importa fazer referência ao espaço onde decorre o ataque. Bem sei que há por aí muito boa gente, de esquerda até, que não compreende o porquê e para quê de espaços culturais ou recreativos direccionados a pessoas LGBT. Que fique claro: é por isto. Se és gay, lésbica, bissexual, trans, queer, sabes o que é avaliar, em todos os lugares onde vais, se estás seguro, se estás a salvo, se corres risco de ser insultada, desprezada e agredida; já te coibiste de expressar um simples afeto ou carinho; já tiveste medo de parecer demasiado bicha ou demasiado fufa. Se és LGBT, sabes que há espaços onde te sentes mais seguro, protegido, menos sozinha, mais respeitada e livre de seres como és. Foi num destes lugares que ocorreu o massacre, em Orlando. Num espaço seguro, de gente como nós, com quem rimos e dançamos longe de quem nos julga e inclusive, que confiamos que nos irá proteger se a homo-bi-transfobia ali entrar; sentimos, embora sempre com contornos diferentes, o mesmo perigo iminente que espreita lá fora. Por tudo isto, hoje sentimos um medo acrescido.

Há cerca de um ano, celebrava-se a conquista da igualdade no acesso ao casamento, nos Estados Unidos. Muitas e muitos de nós acrescentámos um filtro arco-íris à nossa fotografia de perfil, celebrando, assim, o fim de uma discriminação legal. Um ano depois, choramos a morte de mais de 50 pessoas LGBT no seu espaço seguro. Por essenciais que sejam as alterações legais, pela esperança e o alento que transmitem, quase tanto como pela mudança efetiva nas vidas das pessoas, é importante perceber que esse é o mínimo dos mínimos, é o princípio da nossa luta. O resto está por fazer, estamos cá para isso.

Não sou Orlando. Orlando não foi o alvo principal. O alvo principal é o mesmo alvo de quando chamas paneleiro ao teu colega, “contra-natura” ao teu filho ou à tua neta; o mesmo alvo de quando insultas um casal de mulheres na rua; é o alvo de quando achas que “homossexuais está bem, mas bichas é que não”, ou “façam a vossa vida mas longe de mim”. É a versão terrorista de um terror que se sente todos os dias. É fácil ser-se Orlando ou rezar por Orlando, mas não é isso que está em causa. E ser-se lésbica, gay, bissexual, trans, queer, intersexo ou assexual? Quantos de nós estão dispostos a ser LGBT, contra a violência e o ódio?

Se és LGBT, pelo fim da violência e do ódio perpetrado contra pessoas LGBT, vem ser solidário, vem marchar connosco. Vem continuar uma luta que não se esgota na lei, que quer sempre mais, que se chama Orgulho porque ele é o único escudo que nos permite unir e organizar contra o medo, a vergonha e a violência.

Artigo publicado em p3.publico.pt em 14 de junho de 2013


Sobre o/a autor(a)

Estudante da Universidade de Lisboa. Membro da coordenadora nacional de jovens do Bloco de Esquerda
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