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Espanha 2016: Tropismo para a direita

É certo que se perdeu uma grande oportunidade de criar uma frente do Sul no seio da União Europeia, mas também é verdade que a mais que provável continuação das políticas austeritárias abre boas possibilidades para a esquerda no futuro próximo.

As eleições realizadas este domingo, em Espanha, na sequência do impasse criado pelos resultados do ato eleitoral de dezembro passado, saldaram-se, quiçá inesperadamente, por uma deslocação do eleitorado para a direita, com consequente reforço do Partido Popular (PP), do primeiro-ministro Mariano Rajoy. Contrariando todas as sondagens, a coligação de esquerda Unidos Podemos, englobando o Podemos e seus aliados regionais, mais a Esquerda Unida (IU), saiu derrotada: não só perdeu votos relativamente à soma das duas forças que a constituíam mas também falhou o objetivo de ultrapassar os socialistas do PSOE, que resistiram à pressão da esquerda e mantiveram o seu lugar como segunda força política do país, apesar de terem perdido lugares. O outro partido recém-formado, os Cidadãos (C´s), de centro-direita, também perdeu votos e deputados. Já as formações nacionalistas catalãs, bascas e canárias mantiveram-se estáveis, embora, na Catalunha, a esquerda (ERC) tenha aumentado o seu avanço sobre a direita (CDC).

O PP foi o grande vencedor, obtendo 33,0% dos votos (+4,3% que em dezembro) e 137 lugares no Congresso (+14 que então). Os ganhos vieram, em grande parte do eleitorado centrista: de eleitores dos C´s, que cederam à pressão do chamado “voto útil” contra a hipótese de um governo liderado pelo Podemos, e também de outros que votaram no PSOE em 2015 mas que, agora, viram nos “populares” a melhor solução de estabilidade governativa. Mas penso que foi na abstenção que o partido alicerçou a sua vitória eleitoral. Se, a nível nacional (e, ao contrário do que tem sido dito), ela se manteve quase igual a dezembro (apenas -0,1%), há variações ao nível das Comunidades Autónomas. Assim, verificamos que ela diminui em regiões onde o PP tem, habitualmente, melhores resultados: Galiza (-8,1%), Cantábria e La Rioja (-2,3%), Castilla y León (-2,1%), Madrid e Múrcia (-0,2%). As exceções são as Astúrias (-4,4%) e as Canárias (-4,1%), mas, não por acaso, os “peperos” registam grandes subidas nessas duas regiões. Julgo que terá havido algum eleitorado conservador que, desiludido com os elevados níveis de corrupção e as políticas austeritárias levadas a efeito pelo PP, terá ficado em casa em dezembro. Agora, perante a perspetiva da formação de um governo de esquerda ou da continuação do impasse governativo, mudou de ideias e foi votar onde habitualmente vota.

Entretanto, os resultados do referendo britânico, com a inesperada vitória do Brexit, foram habilmente aproveitados por Rajoy, que bramiu a ameaça da instabilidade política e o perigo de desagregação do próprio Estado Espanhol, algo que terá levado alguns segmentos do eleitorado a votar, à última hora, na continuidade, enganando, assim, todas as sondagens. Mas, apesar do bom resultado, os populares continuam longe da maioria absoluta obtida em 2011.

Por seu turno, o PSOE sai destas eleições com um sentimento misto: com 22,7% dos votos, aumentou ligeiramente a sua votação (+0,7%) e evitou a ultrapassagem do Unidos Podemos. Porém, devido ao reforço do PP e ao facto de Podemos e IU se terem apresentado coligados, perdeu cinco lugares, passando de 90 para 85, o que aumentou a diferença relativamente aos conservadores. Para essa pequena subida, terão contribuído certos eleitores habituais do partido que, em dezembro, apostaram no Podemos e, em menor grau, nos C´s. Agora, talvez pelo efeito do Brexit, regressaram à base, por receio da instabilidade política e governativa. Foram eles que compensaram a fuga de algum eleitorado centrista do PSOE para o PP.

A grande deceção destas eleições foi a coligação de esquerda Unidos Podemos e seus aliados regionais. Com 21,1% dos votos, obteve menos 3,3% relativamente à soma do Podemos e respetivos aliados na Catalunha, Comunidade Valenciana e Galiza (20,7%) e da coligação Unidade Popular (UP), constituída pela IU e pequenos partidos de esquerda (3,7%) no anterior ato eleitoral. Contudo, a majoração que o método de Hondt garante às maiores concentrações eleitorais permitiu a manutenção dos 71 mandatos conquistados em dezembro (então, 69 para o Podemos e aliados regionais e dois para a UP). Falhou, pois, o grande objetivo de ultrapassar os socialistas e se tornar na principal força de esquerda no país. Para além de ter perdido votos para o PSOE, pelas razões já referidas, também viu fugir outros, marginalmente, para os C´s e para os animalistas do PACMA, por parte de eleitores que defendem uma mudança de protagonistas políticos mas não são de esquerda e não gostaram da aliança com a IU. Apenas em Euskadi e na Catalunha a coligação de esquerda manteve, praticamente, a votação conjunta de Podemos e UP nas últimas eleições, graças a mais alguns votos roubados aos independentistas radicais da EH Bildu, no primeiro caso, e aos C´s, no segundo.

Porém, as maiores perdas foram para a abstenção, num movimento simétrico ao do PP. Com efeito, foi, em geral, nas Comunidades Autónomas onde a esquerda tem mais apoio que a percentagem de abstencionistas aumentou: Catalunha (+3,0%), Extremadura (+1,8%), Euskadi (+1,6%), Andaluzia (+0,9%), Baleares (+0,8%) e Comunidade Valenciana (+0,7%). As exceções são Castilla-La Mancha (+2,3%) e Aragão (+0,7%), onde o equilíbrio entre os dois campos ideológicos é habitual e onde, em ambos os casos, a esquerda registou perdas significativas. Uma parte do eleitorado, que, em dezembro, apostou no Podemos, terá ficado desiludida com alguns jogos políticos e responsabilizado a alegada intransigência de Pablo Iglesias pelo impasse na investidura de um novo governo liderado pelos socialistas e absteve-se. Para além do mais, sendo um partido-movimento, sem um aparelho sólido, tem mais dificuldade em mobilizar os seus apoiantes. Também alguns eleitores da IU (em especial, os mais ligados ao Partido Comunista de Espanha – PCE) não concordaram com a coligação com o Podemos e ficaram em casa.

Os Cidadãos (C´s), que obtiveram 13,0% dos votos (-0,9%) e 32 deputados (menos oito) saem também derrotados destas eleições, embora não tanto como algumas sondagens indicavam. Apesar de ter perdido bastantes votos para o PP, por pressão do voto útil à direita, logrou ir buscar certos eleitores desiludidos com o Podemos, mais uns poucos na área do PSOE e, ainda, nos restos do moribundo partido centrista UPyD. O elevado número de lugares perdidos está mais relacionado com a subida dos populares e a coligação das forças de esquerda que a perda de votos por parte do partido, que, assim, mantem a sua importância no quadro político espanhol.

Um dos aspetos mais curiosos desta eleição é a estabilidade do eleitorado nacionalista na Catalunha, em Euskadi e nas Canárias.

Contudo, entre os catalães, houve um reforço da Esquerda Republicana da Catalunha (ERC) em detrimento da centrista Convergência Democrática da Catalunha (CDC), apesar de ambas as forças políticas terem mantido o mesmo número de deputados no Parlamento de Madrid: nove para a primeira e oito para a segunda. Curiosamente, o que a ERC ganha é o que a CDC perde (exatamente 0,24% a nível estatal).

Em Euskadi, os nacionalistas do EAJ-PNV (centro-direita) mantiveram a mesma percentagem de votos mas perderam um lugar (de seis para cinco) devido ao efeito da aliança entre Podemos e IU, que conquistou um mandato à sua custa na província da Bizkaia. Já os independentistas da EH Bildu (esquerda radical) voltaram a ver mais uma pequena fatia do eleitorado fugir para a coligação de esquerda mas seguraram os seus dois deputados.

Por fim, nas Canárias, os nacionalistas da Coligação Canária-Partido Nacionalista Canário (CC-PNC) mantiveram a sua percentagem de votos e o eleito por Santa Cruz de Tenerife.

Resta, então, saber como desfazer o impasse governativo, sendo que os resultados eleitorais não deixam margem para a formação de um governo de esquerda. Se, em dezembro, já não era muita, agora não é nenhuma. Um eventual executivo chefiado por Pedro Sanchez, com apoio do Unidos Podemos e das formações nacionalistas bascas e catalãs teria de ter, da parte destas últimas, a garantia de que elas desistiriam, para já, da realização do referendo à independência da Catalunha, porventura em troca de uma revisão do estatuto de autonomia que aumentasse os poderes regionais, o que não parece crível. Mesmo que isso fosse conseguido, seria sempre uma solução muito frágil, não só pelo antagonismo existente entre Sanchez e Iglesias, mas também pelas divisões que causaria no interior do PSOE.

Tudo indica que o PP acabará por formar governo, mas resta saber com quem. Rajoy aposta num “bloco central” com os Cidadãos e os socialistas, mas Sanchez rejeita a ideia, pois sabe que a participação nessa governação poderia conduzir ao reforço do Unidos Podemos (que ficaria, nesse caso, como único partido nacional na oposição) e à consequente “pasokização” do PSOE. Já Alberto Rivera aceita coligar-se com o PP mas sem Rajoy. Porém, depois de um triunfo eleitoral, dificilmente os populares afastarão o seu presidente. Parece, pois, que o líder dos C´s se estará a “fazer caro” para melhor garantir o seu quinhão de poder. Haveria, ainda, a possibilidade de um governo minoritário do PP, com o apoio dos C´s, do EAJ-PNV e da CC-PNC, que garantiria o apoio de 175 deputados, isto é, exatamente metade dos lugares no Parlamento. Ou seja, faltaria um voto para a maioria absoluta e não se sabe de onde poderia vir. Além disso, haveria outro problema: os C´s (altamente hostis aos nacionalismos periféricos) não parecerem compatíveis com os eventuais aliados bascos e canários, o que torna difícil passar à prática essa solução.

Mais uma vez a “bola” está no campo dos socialistas. Pedro Sanchez é um líder fraco e só o facto de não ter sido ultrapassado pela coligação de esquerda o poderá ter salvado, pelo menos para já. E está sobre grande pressão da presidente do governo da Andaluzia, Susana Diaz, uma “baronesa” regional, aparelhista, ambiciosa e que representa a ala direita do partido. E, ao contrário do PS português, não se vislumbra um António Costa, que arrisque uma viragem à esquerda.

Tudo indica que, depois de um voto contra Rajoy na sua primeira tentativa de investidura, o PSOE se abstenha na segunda, onde só é necessária uma maioria simples, viabilizando o executivo minoritário do PP, em nome da estabilidade política e da necessidade de evitar uma indesejada terceira consulta eleitoral. Que, aliás, tudo indica, só favoreceria os “peperos”. Por seu turno, os C´s poderão ou não participar nesse governo. Se aceitarem participar na governação, arriscam tornar-se apenas na “muleta” dos populares. A não ser que Rajoy lhes faça uma oferta muito tentadora, deverão ficar de fora, restando saber se votarão favoravelmente a sua equipa governativa ou se acompanharão o PSOE na abstenção.

Que resta, então, à esquerda?

Se é certo que os resultados de domingo constituíram uma grande desilusão, em especial face às sondagens, a verdade é que a coligação Unidos Podemos obteve um resultado apreciável, atendendo a que o seu principal partido (o Podemos) foi formado há cerca de dois anos a partir do movimento dos Indignados e possui uma débil estrutura organizativa.

É essencial evitar agora a tendência para encontrar “bodes expiatórios” e entrar nos habituais “passa culpas”. Apesar de não ter funcionado a 100%, há que manter a aliança entre o Podemos e a IU, até porque, dada a reduzida magnitude da maioria dos círculos eleitorais, a dispersão de votos entre as forças de esquerda pode levar à não eleição de um número significativo de deputados. Acresce, ainda, que Pablo Iglesias e o líder da IU, Alberto Garzón, se complementam: a fogosidade e assertividade do primeiro é temperada pela tranquilidade e simpatia do segundo. E, claro, só um projeto que abranja toda a esquerda poderá tornar esta numa alternativa credível.

É certo que se perdeu uma grande oportunidade de criar uma frente do Sul no seio da União Europeia, mas também é verdade que a mais que provável continuação das políticas austeritárias por parte do novo governo da direita, com a cumplicidade (ativa ou passiva) dos C´s e do PSOE, abre boas possibilidades para a esquerda no futuro próximo. Até porque dificilmente a legislatura durará os quatro anos e, quando houver nova ida às urnas, o PP e os seus prováveis cúmplices estarão mais desgastados que agora. Há, pois, que ter paciência e preparar os combates que aí vêm.

Sobre o/a autor(a)

Professor. Mestre em Geografia Humana e pós-graduado em Ciência Política. Aderente do Bloco de Esquerda em Coimbra
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