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Nem uma lágrima

O referendo britânico não foi o primeiro choque frontal das instituições europeias com a vontade popular.

Há cerca de uma década, em 2005, os povo da Holanda e da França rejeitaram em referendo o Tratado para uma Constituição Europeia. Às críticas sobre a natureza antidemocrática desse Tratado, economicamente liberal e institucionalmente autoritário, a União Europeia fez orelhas moucas – e fez entrar pela janela o que não conseguira fazer entrar pela porta.

Há cerca de um ano, houve o referendo grego. Durante semanas, assistimos à chantagem mais desenfreada por parte das forças que dirigem a União. Os porta-vozes da Direita e dos socialistas (Merkel e Junker, Moscovici e Dijsselbloem à cabeça) ameaçaram o povo grego caso votasse contra o novo memorando que impunha mais austeridade. Para surpresa das elites, o não ganhou no referendo. Mas a lição que os gregos deram serviu de pouco. Seguiu-se uma demonstração de força pelas instituições contra esse gesto democrático, com o objetivo de esmagar o Governo grego e fazê-lo aceitar o que o povo rejeitara. Se dúvidas houvesse, tudo ficou claro. A União Europeia é hoje uma máquina antidemocrática ao serviço de uma agenda neoliberal, que pune as alternativas e que tem demolido as conquistas sociais. Essa União não tem interesse e não tem futuro.

Os referendos não são casos únicos. Há poucos dias, os Médicos do Mundo decidiram rejeitar as doações vindas das instituições da União Europeia pelo que consideraram ser uma resposta vergonhosa dos líderes europeus à crise de refugiados. Se olharmos para o modo como as instituições europeias geriram o desafio maior da vaga migratória, confirmamos a sua natureza. A violação dos direitos humanos, o racismo e um duplo padrão na relação com os diferentes Estados tem sido a política da União neste domínio. É possível alguém defendê-la?

É certo que uma parte importante da saída britânica se deve ao racismo mais miserável contra os refugiados e os imigrantes e à reivindicação de uma identidade nacional feita de medos e assente numa fronteira contra os outros. Compreendo por isso os meus amigos que, sendo imigrantes portugueses em Londres, ficam apavorados com o modo como a extrema-direita conduziu a sua campanha pelo Brexit. Têm boas razões para isso. A crise económica alimentou a insatisfação. O discurso identitário, que dominou a campanha do referendo, é um debate minado e inútil. O projeto da saída defendido pela Direita não traz nenhuma alteração positiva: é a manutenção do poder financeiro, um fecho de fronteiras contra os estrangeiros, o provável reforço da relação com os Estados Unidos e, com o Reino Unido fora, um maior poder da Alemanha na condução da União.

É preciso é agora saber como reagem as instituições europeias ao choque do Brexit. Desse ponto de vista, a convocatória de uma reunião de "países fundadores" é já um mau começo. Mas é preciso saber também como reagem os movimentos que têm lutado por uma outra Europa, que não seja refém das elites e que assente na solidariedade entre os povos e no reconhecimento da soberania popular. Essa seria uma Europa que vale a pena. Por esta União, não nos peçam nem uma lágrima.

Artigo publicado em expresso.sapo.pt a 24 de junho de 2016

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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