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O cinismo no debate sobre o financiamento público da Escola Privada

À direita, dois argumentos principais têm sido avançados para defender a manutenção do financiamento por dinheiro dos contribuintes dos colégios privados com contratos de associação (e com escolas públicas por perto): o “direito à escolha” e os “compromissos” assumidos (ou “direitos adquiridos” na linguagem esquerdista de Marques Mendes). E é interessante que ambos, apesar de martelados incessantemente durante largos minutos nos noticiários nacionais, não façam caminho e não consigam deixar de soar a uma defesa corporativa de privilégios.

Apesar de sabermos que a sua força não é a da racionalidade mas a dos interesses que os criaram, percamos algum tempo a olhar para eles. Um destes argumentos é defensivo o outro é ofensivo. É defensivo o argumento dos direitos adquiridos. Resume-se no seguinte: o facto do anterior governo ter assinado um acordo daria direito a este financiamento. Em primeiro lugar, o argumento choca com as juras do governo do PS de que vai manter o acordado. Assim, basicamente, o que está em causa na disputa não será a manipulação emocional televisionada sobre o futuro dos coitados dos alunos que vão perder os amigos e a escola que tanto amam mas a continuação permanente do negócio nesses colégios para os anos seguintes.

Em segundo lugar, o argumento perde-se no mesmo sítio onde se perdeu a coerência de todos os direitos adquiridos esmagados pela mesma direita que o usa. Aliás, cada vez que tal argumento é utilizado tem o efeito contraproducente de trazer-nos à memória a sua seletividade cínica: há compromissos de Estado que valem eternamente e outros que são para anular a gosto. Os pensionistas não poderiam falar em direitos adquiridos quando lhes baixaram as pensões, os trabalhadores não poderiam falar em direitos adquiridos se lhes aumentam os impostos, apenas para os colégios este princípio seria aplicável.

O segundo argumento, o do direito à escolha, é ofensivo. Está claramente deslocado da discussão sobre os contratos de associação entendidos como formas de assegurar o acesso à educação onde não há escola pública: nestes casos não se trata de direito à escolha porque estes alunos teriam de frequentar a única escola das redondezas. Assim, o argumento até se pode facilmente inverter colocando a questão de pernas para o chão: estas famílias não têm direito à escolha precisamente porque lhes é vedado o direito de optar pela escola pública ficando assim sujeitos a um “projecto educativo” definido por interesses particularistas a que são alheios.

O carácter ofensivo do argumento está no facto de ele não se limitar a defender que é aceitável manter ad eternum as rendas públicas a privados em vez de construir novas escolas públicas, não se limitar sequer a querer manter a decisão do governo anterior que perverteu (ainda mais) essa ideia de contrato de associação alargando-a até ao limite do absurdo, mas procurar generalizar este financiamento público às empresas privadas.

O “direito à escolha” é o nome descarado do cheque-ensino, a forma dos “liberais” defenderem que o Estado financie empresas com ligações aos partidos do sistema. O “direito à escolha” é o financiamento de um negócio dirigido às classes médias e altas em detrimento de um direito que deveria ser assegurado para todos. Essa batalha é fundamental porque sabemos que não haverá “direito à escolha” sem dar uma machadada letal na qualidade do ensino público.

Mas a minha atenção não pode deixar inevitavelmente de se prender num terceiro argumento. A sua importância tem sido menor no contexto da discussão mas a sua utilização é, para mim, chocante: o de que esta decisão do governo atingiria o emprego e os direitos dos trabalhadores docentes e não docentes dos colégios.

A direita que nunca antes se preocupou com os direitos destes trabalhadores, que apresentou os professores frequentemente como uma casta privilegiada, que os despediu em massa, pretende surgir agora como campeã dos seus direitos. Os colégios privados, alguns deles reconhecidos como péssimos empregadores, negando direitos básicos e procurando o máximo da exploração da mão-de-obra docente, de repente descobrem nesses direitos uma arma de arremesso.

Tocando num ponto sensível, este argumento levou mesmo a uma declaração inédita por parte de um governo: a de que se poderiam contratar os funcionários e docentes que sejam despedidos pelos colégios nas escolas públicas. Claro que fazê-lo sem deturpar os concursos de docentes é praticamente impossível, o que pode indicar que se trata de uma intenção vazia. Mas não deixa de ser simbólico porque quando se desviou turmas do público para o privado, despedindo-se professores, tal nunca foi posto em causa. Coerências…

Faço parte de um grupo de pessoas que, em condições difíceis, se organizaram em comissões de professores contratados e desempregados para lutar pela qualidade do ensino público, pela diminuição do número de alunos por turma e pela vinculação dos docentes contratados. Acabei do lado de fora do ensino mas entretanto fui assistindo à expulsão por parte de governos do PS/PSD/CDS de milhares de professores e educadores do ensino. Daí que sinta visceralmente a hipocrisia de tal argumentação. Parece que vale tudo para defender os negócios dos amigos, até tentar virar trabalhadores contra trabalhadores.

Se a direita se quiser juntar à luta pelos direitos de trabalho no ensino particular vai sempre a tempo: são necessários salários decentes, acabar com a precariedade, respeitar horários, não usar os professores como paus para toda a obra. Vão ver como os “projectos educativos” privados melhoram.

Se a direita se quiser juntar à luta pela qualidade do ensino público e se está preocupada com o desemprego também vai a tempo: experimentemos diminuir o número de alunos por turma e limitar carácter de fábrica que despersonaliza o ensino. Vão ver como a liberdade educativa brotará da liberdade de aprender e ensinar na diversidade da escola pública.

Artigo publicado no blogue liberdadeaserio.net

Sobre o/a autor(a)

Professor.
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