You are here

O Euro e a crise europeia

A pressão deflacionista mostra as contradições da União Monetária no atual momento, porque bloqueia o crescimento e a criação de emprego, provoca recessões e crises de consequências devastadoras.

A primeira grande referência do Euro é a teoria das Zonas Monetárias Ótimas introduzida por Robert Mundell em 1961. Baseou-se na ideia liberal da eliminação de todo o tipo de barreiras à livre circulação de capital, trabalho e produtos e de uma estrutura exportadora diversificada como condições necessárias para a união monetária e a moeda única, juntamente com uma união política que viabilizasse transferências compensatórias para países penalizados por choques assimétricos.

A automaticidade do funcionamento dos mercados e níveis de desenvolvimento semelhantes favoreceriam o desaparecimento de especificidades nacionais que pudessem perturbar a plena mobilidade do trabalho (por exemplo, diferentes sistemas de pensões), a sincronização dos ciclos económicos entre os membros do espaço comunitário (e a intervenção contra cíclica do BCE) ou mesmo a desarticulação dos sistemas de proteção dos direitos dos trabalhadores. Isto é, o trabalho (flexível) é a variável de ajustamento que será necessário “sacrificar” para obter convergência, conceção que se pode articular com uma agenda política conservadora, incompatível com a política industrial e outras das economias periféricas, que pressupõem decisão soberana.

A outra grande referência do Euro é o regime de Padrão-Ouro clássico, sistema monetário internacional entre 1880 e 1914 em ligação com a liderança mundial da Inglaterra, baseado num preço fixo do ouro em termos de cada moeda nacional e em paridades fixas por longos períodos. A escassez do ouro forçou os governos a deflacionar as suas economias, especialmente as periféricas, com menos acesso ao metal precioso, proporcional ao seu inferior nível de desenvolvimento e menor competitividade internacional.

O euro sobrevalorizado produz igualmente efeitos deflacionistas, contraindo a procura, aumentando o desemprego, provocando falências, quedas de preços e salários e emigração. Sem bancos centrais com funções emissoras, o Estado dos países periféricos recorre ao financiamento privado com custos altos em situações de emergência não cobertas pela intervenção do BCE. O paralelismo com o regime do Padrão-Ouro não poderia ser maior: o euro é uma versão radical do mesmo, abolindo as moedas nacionais, e as dívidas soberanas tornaram-se um negócio lucrativo para os capitais especulativos. Tal como no século XIX a Inglaterra financiava o resto do mundo com libras esterlinas, substituindo o ouro como moeda de reserva internacional, hoje a Alemanha e outros países do centro da Europa forçam os países periféricos a denominar as dívidas numa divisa que exprime o seu poder hegemónico.

A pressão deflacionista mostra as contradições da União Monetária no atual momento, porque bloqueia o crescimento e a criação de emprego, provoca recessões e crises de consequências devastadoras, mas é importante para os credores impedindo a desvalorização das dívidas contraídas pelas economias expostas. Vivemos de novo na era dos credores, e o pavor do BCE face à inflação é a expressão ao nível do Euro dos objetivos das potências dominantes. Na impossibilidade de desvalorizar a moeda ou produzir inflação, só resta a um Estado endividado (excluindo a necessária renegociação da dívida ou o incumprimento) a desvalorização interna, cortando salários e preços bem como a despesa.

Tal como o surgimento de partidos políticos representando as classes trabalhadoras, a extensão do sufrágio universal e a evolução ascensional do movimento operário dos inícios do século XX (Revolução Russa e a I Guerra Mundial) tornaram insustentável o regime do Padrão-Ouro clássico, também nos dias de hoje a consciência crescente dos flagelos do desemprego, das desigualdades e da pobreza trazidas pelo sistema euro acabarão por revelar a necessidade de libertar os objetivos da política económica interna do espartilho da política monetária. Isto quer dizer que o formato atual do Euro pode ter os dias contados e a sua substituição por outro arranjo ser apenas uma questão de tempo. Não há inevitabilidades nestas matérias, tudo vai depender da dinâmica social e da relação de forças que se vier a estabelecer no terreno.

Artigo publicado no jornal “Público” a 10 de maio de 2016

Sobre o/a autor(a)

Economista e professor universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda.
(...)