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O cartão de cidadão ou as palavras silenciadas das mulheres de Atenas

Se tantas mulheres se sentem discriminadas pelo género e sentido das palavras, não deverá o Estado ter pelo menos algum papel simbólico exemplar, ainda que potencialmente reduzido?

Libertou-se a fúria ultramontana com os comentários à proposta do Bloco de Esquerda para mudar o nome do cartão de cidadão para cartão da cidadania. Alguns comentadores aproveitaram decerto a ocasião para concretizarem a fúria acumulada contra este partido. Outros, em estilo circence, tão-somente encontraram uma oportunidade para glosarem até à exaustão, com exemplos ora grotescos, ora engraçadinhos, exercícios de mudança de género das palavras. Finalmente, temos ainda os casos habituais que clamam contra a falta de prioridade desta proposta. Em relação a estes, convém lembrar que o combate político mais exigente articula prioridades, redefine urgências, cria as ocasiões e jamais se deve submeter à lógica preguiçosa e rotineira de repetir até à náusea as teses do que é ou não é central na opressão, porque a opressão exerce-se precisamente no cruzamento e na cumulatividade das suas múltiplas formas.

Bem diferente, Lídia Jorge, aos microfones da TSF, utilizou dois argumentos principais contra a proposta: em primeiro lugar, a língua é um produto milenar indiferente às conjunturas e, por isso, não adianta fixar-lhe um sentido sexista pois isso é como olhar o passado com os olhos do presente. Em segundo lugar, ela, Lídia Jorge, sentia-se perfeitamente incluída na palavra "cidadão".

Comecemos pelo primeiro ponto: a língua é um processo histórico e uma herança. Mas é também algo que se está fazendo todos os dias. Qualquer interação concretiza e atualiza os sentidos dessa estrutura viva, em atos linguísticos que dela se apropriam, interpretando-a, isto é, modificando-a. Não será manifestamente redutor considerá-la apenas do ponto de vista da duração, das suas regras e propriedades, esquecendo a dimensão ativa, criativa, performativa e por vezes improvisada dos modos de falar e de dizer as coisas? O morto coloniza o vivo ou a língua é a vida a correr nas veias dos vivos? A língua é apenas um a priori, uma espécie de absoluto transcendental ou opera na feitura da própria realidade? Falar não é também fazer e agir?

Em segundo lugar, as experiências de sofrimento pela opressão, sendo subjetivas, devem alimentar a nossa consciência comum, libertando-a. Lídia Jorge, magnífica escritora que tanto prezo e que criou personagens e universos femininos inesquecíveis, não se sente prejudicada pelo universal masculino e neutraliza-o reduzindo-o a herança. Mas, se tantas mulheres se sentem discriminadas pelo género e sentido das palavras, não deverá o Estado ter pelo menos algum papel simbólico exemplar, ainda que potencialmente reduzido? Ou renunciamos à ligação entre a política e a vida?

Convém não esquecer toda a miséria da filosofia grega, consubstancial à sua grandeza: onde estavam as palavras das mulheres de Atenas?

Sobre o/a autor(a)

Sociólogo, professor universitário. Doutorado em Sociologia da Cultura e da Educação, coordena, desde maio de 2020, o Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.
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