You are here

Dragar a Constituição

De forma descarada, o convidado de Marcelo disse ao que vinha, impor o empobrecimento e mudar o regime constitucional.

A intervenção de Mario Draghi no Conselho de Estado já foi analisada no seu contexto imediato: o ataque às medidas que reverteram diretivas da troika, a chantagem sobre o governo português para vir a aplicar um programa extra de austeridade, as ameaças sobre a banca pública.

No entanto, tem de se chamar a atenção para outras sugestões do presidente do Banco Central Europeu, tais como a revisão da Constituição e das leis eleitorais. Porquê? Segundo Draghi, a Constituição conflitua com as "reformas estruturais", designadamente com as alterações no mercado de trabalho. As leis eleitorais não garantem maiorias fiéis à troika.

Assim, de forma descarada, o convidado de Marcelo disse ao que vinha, impor o empobrecimento e mudar o regime constitucional.

Já Merkel tinha vagamente alvitrado que Portugal tem um problema constitucional para resolver quando várias medidas do memorando da troika tinham esbarrado no Tribunal Constitucional. O Sr. BCE não se fez rogado a explicar a coisa por miúdos. O argumento dos tecnocratas finge ser neutro, é só uma questão de competitividade, é só a normalidade dos mercados, etc. De facto, as escolhas são totalmente políticas e plenamente enquadradas na luta de classes movida pelos representantes do capital aos direitos dos trabalhadores.

A flexibilização dos despedimentos individuais, ainda mais do que já fizeram os governos da direita e do PS, a eliminação do conceito de justa causa para descartar trabalhadores "na hora". Tudo como na reforma laboral de Hollande e de Rajoy. A questão laboral não tem sequer incidência orçamental, não conta para o défice. É puramente uma questão de confrontação capitalista.

Quando Passos defendeu como centro do programa da direita baixar os custos do trabalho confirmou o alinhamento com a elite troikista e o interesse imperialista europeu. Percebe-se bem que nós é por aí que temos de ir à luta, tirar a iniciativa ao capital. Em matéria de direitos do trabalho temos de reverter alterações impostas de fora na legislação laboral, começando pelo valor das indemnizações por despedimento. Disso depende a estabilidade no emprego. Disso depende a verticalidade face ao cerco do país precário.

Que dizer do palpite sobre as leis eleitorais? Draghi não gosta do Bloco de Esquerda. Já se sabia. Nós não aceitamos um BCE pseudo independente, que reúne com a chanceler da Alemanha e o presidente de França, pública e notoriamente, para tomar decisões nos momentos críticos do euro.

Nós não aceitamos um banco central subtraído ao controlo dos parlamentos e interligado com os interesses da finança. Nós não aceitamos de todo que o BCE corte a liquidez a países membros do euro para os obrigar a cumprir um programa ditado por especuladores, como tem sido o caso da Grécia e pode vir a ser o nosso.

Aliás, Passos no congresso do PSD ameaçou a maioria parlamentar com o risco do BCE fechar a torneira na compra de dívida soberana no mercado secundário. Draghi não podia ser mais explícito sobre as comodidades de governo, arranjem um funil por onde diminuam a representação do Bloco e do PCP, foi o que expressou.

O regime constitucional não é uma vaca sagrada nem o fim da história. Mas quem quer golpear a Constituição pretende numa penada esvaziar o que resta da soberania democrática de Portugal e cortar ainda muito mais os direitos sociais.

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, professor.
(...)