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A mala da Joana

A intenção até podia ser boa, mas estava-se mesmo a ver que ia dar disparate. Quando Joana Vasconcelos entrou em cena, o que era um risco tornou-se uma certeza: a estupidez e o ridículo tomaram conta da campanha #esefosseeu, que pôs as crianças das escolas e figuras públicas a partilharem o que levariam na mochila se fossem refugiados. Joana Vasconcelos, se fosse refugiada, levava na mochila o seu ipad para as fotografias, as jóias, lã e uma agulha, os seus óculos de sol e o seu iphone para estar contactável. Seria cómico se não raiasse o insulto.

Colocarmo-nos no lugar dos outros é bom. Mas quando a nossa condição não é sequer comparável, quando a simulação se faz em modo de entretenimento, sem qualquer consideração histórica ou política, facilmente o exercício se transforma numa perversa frivolidade. Ouve-se o que as nossas “personalidades” levariam nas mochilas e tudo parece uma piada de mau gosto, como se estivéssemos a brincar aos refugiados. A campanha resvalou para um exercício de voyeurismo: em vez de um barco onde pudessem morrer, de uma viagem motivada pelo desespero e com a garantia da perseguição e do maltrato das instâncias europeias, dir-se-ia que as nossas “figuras públicas” preparam a mochila para ir de férias para uma ilha deserta.

E no entanto, o que está a passar-se é grave de mais. Esta semana teve início um verdadeiro processo de deportação de refugiados, ao abrigo do acordo assinado no dia 18 de março entre a União Europeia e a Turquia, com a cumplicidade de todos os governos. Repetem-se imagens sórdidas e de má memória. A Human Rights Watch resume bem a visão subjacente a este acordo: a Europa trata “os refugiados como lixo humano que deve ser varrido para longe”. Em vez de solidariedade, paga à Turquia, um país cujo respeito pelos Direitos Humanos é uma anedota, para receber os refugiados e fazer o trabalho sujo. A distinção entre “imigrantes ilegais” e “verdadeiros refugiados”, invocada pelas autoridades, é contestada pela própria ACNUR, a agência da ONU para os Refugiados, que declarou que entre as pessoas deportadas mais de uma dezena tinha direito a requerer asilo na Europa.

A Europa que conheceu a guerra e o genocídio, as deportações e o exílio, parece ter apagado a sua memória. Restará algum princípio de solidariedade no “projeto europeu”? Os chamados hotspots transformaram-se em campos de detenção, com condições degradantes que põem em causa os direitos essenciais, e onde se prepara a expulsão em massa. O ACNUR considerou a situação tão grave que decidiu abandonar esses locais por não querer ser cúmplice. Haverá maior sinal de alerta?

Tristemente, parece que nada disto merece verdadeiramente a nossa atenção coletiva. Falar da cumplicidade europeia com a guerra e discutir medidas sérias como o embargo à venda de armas e a moratória à compra de petróleo proveniente de territórios controlados pelo Daesh, de onde vêm tantos dos refugiados? Não se pode. Responder à crise humanitária com humanidade e com políticas de acolhimento? Não há como. Lembrar, também nas escolas, a Carta das Nações Unidas, violada diariamente nos hotspots? Não interessa. Receber, também nas escolas, os refugiados que procuram a Europa? Não há lugar. Acabar com o acordo da vergonha entre a EU e a Turquia? Não convém. Por cá, continuamos a entreter-nos com as malas de cartão dos famosos.

Artigo publicado em expresso.sapo.pt a 8 de abril de 2016

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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