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Razões, mais que suficientes, para o não aplaudir um discurso de posse

Considerando o compromisso prestado pelo Presidente da República empossado, facilmente se explica que, à luz da Constituição, se possa optar por não aplaudir e até por criticar o discurso de seguida proferido.

I – Da expressão constitucional da independência nacional e das funções do Presidente da República

O artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa tem como epígrafe “República Portuguesa” e afirma que “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”.

De acordo com o artigo 7.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa “Portugal rege-se nas relações internacionais pelos princípios da independência nacional” e ainda da “igualdade entre os Estados”

A definição das funções do Presidente da República, constante do artigo 120.º da Constituição da República Portuguesa reafirma a independência nacional e comete ao Presidente da República essa garantia: O Presidente da República representa a República Portuguesa, garante a independência nacional, a unidade do Estado e o regular funcionamento das instituições democráticas e é, por inerência, Comandante Supremo das Forças Armadas”.

O termo de posse do Presidente da República encontra-se constitucionalmente regulado, devendo ser, nos termos do artigo 127.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa, acompanhado da prestação da seguinte declaração de compromisso do Presidente da República eleito: “Juro por minha honra desempenhar fielmente as funções em que fico investido e defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa”.

II – Da intervenção do Senhor Presidente da República na tomada de posse e da alusão ao Tratado de Zamora e à Bula “Manifestis Probatum est”

Na cerimónia de tomada de posse ocorrida a 9 de Março, feita a declaração de compromisso pelo Senhor Presidente da República, Professor Doutor Marcelo Rebelo de Sousa, reputado constitucionalista, mandou o protocolo que o Presidente da República empossado dirigisse a palavra à Assembleia da República.

No seu uso, o Senhor Presidente da República disse, entre outras coisas que Escreveu um Herói Português do Sec.XIX que 'este Reino é obra de soldados'. Assim foi, na verdade, desde a fundação de Portugal, atestada em Zamora e reconhecida urbi et orbi pela Bula 'Manifestis Probatum est'.”1. Esta frase viria a ser reveladora do mérito do não aplauso pelos republicanos e patriotas à intervenção presidencial, justificando cabalmente essa atitude.

A independência nacional foi reconhecida por Afonso VII de Leão no Tratado de Zamora, celebrado a 5 de Outubro de 1143, pese embora mantendo formalmente a suserania do Rei de Leão.

Já a Bula “Manifestis Probatum est”, datada de 23 de Maio de 1179, e assinada pelo Papa Alexandre III, é um enfeudamento do Rei de Portugal ao Papa, fazendo cair o laço de vassalagem prestado ao Rei de Leão (que de resto não tinha qualquer manifestação material).

De tal Bula consta “Para significar que o referido reino pertence a São Pedro, determinaste como testemunho de maior reverência pagar anualmente dois marcos de oiro a Nós e aos nossos sucessores. Cuidarás. por isso, de entregar tu e os teus sucessores, ao Arcebispo de Braga pro tempore, o censo que a Nós e a nossos sucessores pertence. Determinamos, portanto, que a nenhum homem seja lícito perturbar temerariamente a tua pessoa ou as dos teus herdeiros e bem assim o referido reino, nem tirar o que a este pertence ou, tirado, retê-lo, diminuí-lo ou fazer-lhe quaisquer imposições.”2.

Portugal tinha assim o estatuto de vassalo do Papa, bem assinalado com o vínculo feudal estabelecido pela protecção do Papa ao Reino e de pagamento pelo Reino de um tributo de dois marcos de ouro ao Papa.

Este tributo, nem sempre foi pago, foi até objecto de artificiosas desculpas pelos sucessores de Afonso Henriques para o não pagamento, sendo definitivamente abandonado tal pagamento no Reinado de Afonso III 3. E como refere o J. Preto Pacheco “não praticaram nenhuma injustiça os Soberanos portugueses que deixaram de pagar o censo à Santa Sé, desde que dispensaram ou ela lhes não podia eficazmente prestar o serviço pelo qual, antes, os seus antecessores o pagavam. E foi, precisamente, isso o que sucedeu, desde a segunda metade do século XIII em diante.”4

Ao escrever estas linhas, não se ignora do papel legitimador da Igreja ao tempo da Bula “Manifestis Probatum est”. Mas também não podemos esquecer que a sua invocação não pode omitir o seu carácter de instrumento feudal, incompatível com o conceito de independência nacional e de soberania popular hodierno. Vivemos num Estado independente, com forma de governo republicana e assente na liberdade religiosa.

Assim, e considerando o compromisso prestado pelo Presidente da República empossado, facilmente se explica que, à luz da Constituição da República Portuguesa que jurou momentos antes defender, se possa optar por não aplaudir e até por criticar o discurso de seguida proferido.

Admito até, que sem se conhecerem os desenvolvimentos futuros, se pudesse dizer que tudo quanto vai dito resulta de má vontade de interpretação do discurso, mas o tempo encarregou-se, em muitos poucos dias de dar razão a esta interpretação, como ficará demonstrado.

III – Da visita do Senhor Presidente da República ao Vaticano

O Senhor Presidente da República fez a sua primeira viagem oficial ao estrangeiro ao Vaticano.

Prontamente, citando a Agência Ecclesia “O Cardeal-Patriarca de Lisboa sublinhou que o novo presidente referiu no seu discurso de tomada de posse, na Assembleia da República, que o primeiro reconhecimento internacional de Portugal veio da Santa Sé, com a bula «Manifestis Probatum est», em 1179."É sempre um recomeço e é bom que se recomece do princípio", acrescentou o presidente da CEP.”5.

O Senhor Presidente da República corroboraria esse intento alguns dias depois, “Trata-se do reconhecimento perante a entidade que foi a primeira a reconhecer Portugal como estado independente”6.

Até aqui, pouco haverá para dizer, que não seja o simbolismo desta visita, tanto mais quando feita por um Presidente da República que faz questão de no seu currículo, logo a seguir ao seu nome, data de nascimento e naturalidade fazer constar que “É católico, participou em vários movimentos da Igreja.”7, facto político igualmente significativo, ressalvada a sua inviolável liberdade religiosa e de expressão.

Sucede que o Senhor Presidente da República, em tal visita oficial, saudou o Papa Francisco, beijando-lhe a mão8. O beija-mão foi desde sempre um gesto de vassalagem, com inequívoco significado feudal, o mesmo feudalismo ínsito na vassalagem devida à luz da Bula “Manifestis Probatum est”.

O Senhor Presidente da República, nessas circunstâncias encontrava-se no pleno exercício das suas funções, para o exercício das quais jurou cumprir e fazer cumprir a mesma Constituição (artigo 127.º, n.º 3 da C.R.P.), que lhe comete as funções de garante da independência nacional (artigo 120.º da C.R.P.), condição inscrita no artigo 1.º da C.R.P., sendo que as relações internacionais da Republica Portuguesa obedecem aos princípios da independência nacional e da igualdade entre Estados.

Se o cidadão Marcelo Rebelo de Sousa podia beijar a mão do Papa, enquanto católico ou apenas porque para tal tinha vontade? Podia! Se o Presidente da República Portuguesa, em visita oficial poderia beijar a mão de um Chefe de Estado Estrangeiro, para mais com todo o simbolismo revelado neste acto em concreto? Podia, mas não devia, se interpretasse correctamente a Constituição da República Portuguesa e alcançasse o seu juramento! Para não falar no respeito de quem não é católico.

Bem andou quem não aplaudiu o discurso da tomada de posse. Como se viu, era fácil de perceber o seu alcance.


1 Intervenção disponível em presidencia.pt

2 Ver tradução completa em arqnet.pt

3Sobre esta matéria ver PACHECO, J. Preto – Estudos monetários. Lusitania Sacra. Lisboa. ISSN 0076-1508. 7 (1964-1966), pp. 237-314.

4ver PACHECO, J. Preto – Estudos monetários. Lusitania Sacra. Lisboa. ISSN 0076-1508. 7 (1964-1966), pág. 250.

6 Ver em observador.pt

7 Ver em presidencia.pt

8 Ver fotografia em visao.sapo.pt

Sobre o/a autor(a)

Advogado, ex-vereador a deputado municipal em S. Pedro do Sul, mandatário da candidatura e candidato do Bloco de Esquerda à Assembleia Municipal de Lisboa nas autárquicas 2017. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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